Carteiras molhadas. O surf é acadêmico!

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Marcello Árias é professor da Unipran e um dos maiores responsáveis pela entrada do surfe no meio acadêmico. Foto: Arquivo Pessoal.
Quem poderia imaginar? Depois de tantos rótulos infundados e de estereotipias grotescas, o surf parece ter adquirido respeito dentro do último reduto aonde ainda se podia sentir algum tipo de preconceito: os meios acadêmicos e as universidades.

 

A história do esporte no universo acadêmico deve ser analisada tomando por base dois aspectos distintos. O primeiro, são os campeonatos universitários, e o segundo, a própria entrada do surf dentro das rígidas estruturas acadêmicas.

 

A tentativa de organização de eventos universitários não é uma iniciativa nova. No início da década de oitenta algumas universidades realizaram eventos internos para seus alunos, entre elas a PUC de São Paulo.

 

Entretanto, foi somente em 82 que Caetano Martire, Sérgio Gadelha, Mauro Rabellé e Maurilho Boreo realizaram o primeiro campeonato universitário do Estado de São Paulo. Este evento foi realizado na praia de Pernambuco, no Guarujá, e congregou a nata dos surfistas brasileiros que cursavam as mais diversas faculdades.

 

Nomes como Taiu, Cisco Aranã e Feio mostraram a todos que era possível ser um bom surfista e ter uma profissão paralela, uma vez que o profissionalismo no surf ainda engatinhava. As ondas colaboraram bastante com este evento, e o Cisco tornou-se o primeiro campeão universitário que se tem notícia. Depois de 82, ainda existiram dois eventos similares, um em 83 e o último em 84.

 

Este fato foi muito relevante, pois naquela época o estereótipo do vagabundo desocupado ainda apresentava-se como o paradigma vigente, e estes torneios ajudaram o surf a alterar a sua imagem perante a sociedade. Porém, este movimento não obteve força suficiente para se consolidar, já que neste período o surf nacional passava por um momento conturbado em suas estruturas organizacionais.

 

Somente anos mais tarde, com a fundação da ABRASP (Associação Brasileira de Surfe Profissional), o esporte adquiriu mais respeito e credibilidade, muito embora o conceito dos eventos universitários não tenha sido resgatado de imediato.

 

Atualmente, graças à iniciativa de um grupo de rapazes altamente competentes, Thiago Ferrão, Felipe Braun e Alexandre Zeni, fundadores do IBRASURF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento do Surf), os torneios universitários foram resgatados e premiam os jovens talentos que se destacam tanto nas ondas quanto nas carteiras.

 

O IBRASURF vem, desde 99 realizando o Circuito Paulista de Surf Universitário, que conta hoje com duas categorias: Open e Paulistana. Nomes como Alexandre Mariano, Roni Bonetti e Daniks Fisher já se consagraram na categoria Open, e Cadu Piolho e Henrique Trica na categoria Paulistana.

 

Além deste excelente circuito, o IBRASURF realiza também o Confronto Brasileiro de Surf Universitário, onde seletivas preliminares são realizadas nos Estados brasileiros com o intuito de compor as equipes estaduais que disputam no final do ano a final nacional. Em 2001 o grande campeão brasileiro universitário foi Missilvano Alves no masculino e Cristine Mello entre as meninas.

 

É muito gratificante ver esta galera disputando fantásticos eventos e elevando o nível de nosso esporte. Porém, creio que não devemos nunca nos acomodar com o sucesso momentâneo, e sim, utilizar esta força para alavancar ainda mais o desenvolvimento do esporte. Pensando desta forma, sugiro algumas idéias:

 

O conceito de surf universitário, no meu ponto de vista, surgiu para valorizar aquele indivíduo que, mesmo estudando e se esforçando para conquistar uma profissão digna, tem força suficiente para se manter “na ativa”, surfando e estudando de forma integral. Sendo assim, porque os torneios universitários não são abertos a todas as pessoas que tem nível universitário?

 

Parece-me lógico que, se um estudante de engenharia possa ter o privilégio de competir entre os seus iguais, um engenheiro formado, que tenha cumprido o ciclo inteiro, também mereça este privilégio, afinal de contas, ele tem o terceiro grau completo e conquistou o nível universitário. Até mesmo o nosso código penal privilegia estes indivíduos, concedendo celas separadas para os bandidos estudiosos.

 

Uma outra sugestão é criar a categoria professores universitários. Se o torneio é universitário, nada mais sensato, lógico e coerente do que conceder este privilégio aos surfistas que são professores em faculdades e universidades, uma vez que eles também fazem parte do universo acadêmico. Atualmente temos nomes suficientes para o preenchimento de ao menos três baterias. Dilmar Pinto Guedes, Marco Antônio, Tácito Pessoa, Marcelo Baboghluian, Flávio Ascânio entre outros, além de mandarem bem nas manobras radicais, são mestres e doutores em suas áreas afins.

 

Creio que esta seria uma real valorização ao indivíduo que realmente contribui com a economia do país, produzindo e disseminando o conhecimento, sem perder a sua identidade. Talvez a questão do tempo seja um empecilho para a concretização destas sugestões, mas, se a categoria paulistana deixasse de existir, poderíamos facilmente assimilar as sugestões acima.

 

Digo isso baseado no Taiu, no Dodô, no Renan Rocha e em inúmeros outros surfistas paulistanos que literalmente quebraram e quebram as ondas. Separar categorias tomando por base que os meninos que surfam perto do litoral são privilegiados, é negar a competência dos paulistanos na história do surf nacional.

 

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Árias (ao centro) no colégio Patro Homa, em Santos, nos anos 90: pioneirismo. Foto: Arquivo pessoal.
O segundo momento desta história é ainda mais pitoresco, e pode em um futuro não muito distante alterar bastante (e para melhor) os rumos do surf no Brasil. Nosso esporte hoje é matéria acadêmica em várias universidades. O fato é tão recente que ainda não foi solidificado na história, mas já é por si só um fato histórico.

 

 Creio que acabei tendo uma boa participação neste movimento, mesmo sem saber que estava a construir a história também. Cresci em Santos, com boas influências. Alguns de meus tutores, além de excelentes surfistas, eram estudantes e profissionais competentes em suas respectivas áreas: Christhian e John Walthers, Cisco Aranã, entre outros. Isso me estimulou a continuar surfando e estudando.

 

Até que um dia, ainda muito novo, ingressei em uma Faculdade de Educação Física. Lá dentro, de forma muito rudimentar e obscura, comecei a visualizar futuras possibilidades de trabalho com o surf. Tudo isso me parecia bem viável, mas ao mesmo tempo muito, mas muito trabalhoso e distante.

 

Em 90, uma escola particular de Santos, a Patro Homa, aceitou um projeto de inserir o surf nas aulas de Educação Física do então curso ginasial. Durante um ano me diverti muito com aquelas crianças e dividi com elas os segredos do surf. Natação, história do surf, ecologia, primeiros socorros e, claro, muita onda e diversão! Esta foi a primeira escola do Brasil que inseriu o surf em seu currículo. Eu serei sempre grato à sua diretora e até hoje uma grande amiga minha, a professora Neuza Maria Feitoza.

 

O projeto Patro Homa repercutiu muito positivamente em Santos, e graças a ele, no dia primeiro de julho de 91 foi fundada a primeira escola pública de surf do país. Com sede própria, aulas teóricas dentro de um espaço cedido por uma faculdade da região, provas de manufatura de pranchas, ecologia, biologia marinha, inglês, entre outras disciplinas.

A Escola Radical de Santos tornou-se um marco na cidade e alavancou o surgimento de inúmeras outras escolas pelo Brasil, que hoje ensinam a centenas de crianças e adultos os prazeres de nosso esporte.

 

A Escola Radical atendeu milhares de pessoas, desde crianças, até adultos, idosos e deficientes físicos. Ficava cada vez mais patente que não bastaria somente ser surfista para atuar nesta área. Eram necessários conhecimentos didáticos e psicopedagógicos, além de informações em áreas como a fisiologia humana, o desenvolvimento motor e a psicologia. Era necessário um aprimoramento por parte dos profissionais.

 

Ao mesmo tempo, um número muito grande de alunos universitários, advindos dos mais diversos cursos, realizava seus trabalhos de conclusão, tendo o surf como tema central em suas dissertações. Os interesses eram e são cada vez mais variados.

 

Em 95 outra pequena mas significativa conquista: a Faculdade de Educação Física de Santos aceita inserir o surf em seu campus, na forma de um curso de extensão universitária destinado a profissionais de Educação Física! Nesta época eu já fazia parte do corpo docente desta faculdade, ministrando a disciplina Fisiologia do Exercício.

 

Devido a este fato, não foi tão complicado sensibilizar o então diretor professor Célio Nóri da importância social desta iniciativa pioneira. Quatro anos mais tarde, em 99, eu e o Cisco obtivemos uma das maiores satisfações de nossas vidas ao inserir o surf como disciplina obrigatória na Faculdade de Educação Física da Universidade Santa Cecília.

Já em 2000, o Professor Ms. Flávio Ascânio assumiu a disciplina Esportes Radicais (Surf e Skateboard) na Faculdade de Educação Física de Santos.

 

Mas, o melhor ainda estava por acontecer. O ano de 2000 marcou a minha chegada ao Centro Universitário Monte Serrat – UNIMONTE, em Santos. Fui contratado como professor de Fisiologia do Exercício em sua Faculdade de Educação Física, e para minha surpresa, fui professor de um grande amigo meu, o Milton Pereira. Milton foi um de meus tutores em minha breve carreira como competidor, e me ajudou muito com a Natural Art, um de meus primeiros patrocinadores.

 

Além de aluno, Milton, sendo um dos responsáveis pela UNIMONTE, me apresentou ao seu primo, o Pró-Reitor Administrativo Financeiro Valdir Lanza. Juntos travamos uma grande amizade e começamos a delinear o perfil do que poderia vir a ser o primeiro núcleo universitário de esportes praticados com prancha do mundo, a UNIPRAN.

 

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Estrutura do Brasileiro Universitário de Surfe: um projeto que valoriza o esporte perante a sociedade. Foto: Ivan Storti.
A UNIPRAN, um núcleo de ensino, pesquisa e extensão dos esportes com prancha, objetiva justamente estabelecer um perfil acadêmico para estes esportes (surf, skate, snowboard, wakeboard, windsurf, etc), sem, contudo descaracterizá-los de suas essências, eminentemente lúdicas e recreativas. Atualmente, na UNIPRAN, 10 alunos estão cursando o primeiro curso de pós-graduação em surf e esportes praticados com prancha do mundo, além de estarem abertas as inscrições para a segunda turma.

 

Este curso objetiva capacitar os profissionais da área da Educação Física em aspectos históricos, pedagógicos, fisiológicos, tecnológicos, administrativos e metodológicos para o trabalho com atletas e praticantes desses esportes, além de capacitá-los a compreender a dinâmica envolvida no atual mercado de consumo.

 

O curso é ministrado por um grupo altamente selecionado de profissionais. Na sua grande maioria, mestres e doutores em suas respectivas áreas, tais como, fisiologia, fisioterapia, nutrição, turismo, música, engenharia, sociologia, etc. Entretanto, todos eles surfam, andam de skate e não se esqueceram de suas paixões primordiais. Este é o maior diferencial deste curso, pois diminui em muito o habitual abismo existente entre corpo docente o corpo discente nas instituições de ensino superior.

 

Embora a UNIPRAN já seja uma realidade, é evidente que a concretização de todos esses projetos é uma tarefa para médio e longo prazo. Por um lado, o que mais me motiva em tudo isso é a possibilidade de se gerar empregos, de capacitar seres humanos a exercer aquilo que mais gostam, de uma forma profissional, prazerosa e remunerada.

 

Mas, por outro, as pessoas que atualmente exercem atividades docentes em escolas de esportes, e que não são formadas em Faculdades de Educação Física, podem dentro em breve ser impedidas de trabalhar, pois atualmente o Conselho Federal de Educação Física – CONFEF – vem fiscalizando, normatizando e regulamentando a profissão.

 

E não se trata de elitizar o surf, muito pelo contrário. A única forma de ampliarmos o mercado, ganhar moral e credibilidade, é através da regulamentação da profissão, o que aliás é muito natural, já que os mais diversos tipos de profissionais que hoje têm respeito na sociedade, antes de terem suas profissões regulamentadas eram pessoas que, como nós, exerciam suas atividades por prazer.

 

A UNIPRAN foi criada justamente com esse intuito. Ela está sendo desenvolvida para capacitar os futuros profissionais a exercer suas profissões com dignidade e respeito perante a sociedade. Uma prova disso foi a recente contratação do grande surfista Luis Neguinho, campeão brasileiro de 82, que agora ministra aulas de surf, juntamente com professores de Educação Física. Além de seu talento inegável, tem impressionante simpatia e generosidade no trato com os alunos.

 

Mas ele ainda não será professor, e sim instrutor auxiliar, ao menos por enquanto, até que legalize sua situação frente ao CONFEF. Para fazer isso, Luis já retornou aos estudos o que, aliás, é o que esperamos que ocorra com todos aqueles que almejam viver no mundo do surf, do skate, do snowboard, do windsurf, do wakeboard e de todos os outros boards, mas que abandonaram os cadernos antes da hora.

 

Existe hoje, e existirá cada vez mais, daqui pra frente, opções no mercado de trabalho, e nossa esperança é que idéias como a da UNIPRAN solidifiquem-se em outras instituições de ensino, gerando desenvolvimento, empregos e a certeza de um trabalho sério e de diversão para toda a vida… Como fala meu grande amigo, o professor Ms. Flávio Ascânio: É nóis!

 

Prof.Ms. Marcello Árias
Coordenador da UNIPRAN – Universidade da Prancha
Professor do Centro Universitário Monte Serrat – UNIMONTE/Santos

http://www.unimonte.br/site/unipran/