Soul surf

Comunidade

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Equipe OP na década de 80. Em pé, da esquerda para a direita: Formiga, Eliete Karadec e Alberto Pena. Em baixo, Plínio Cury, Paulo Rabello e Taiu Bueno. Foto: Reprodução.
Quando você está andando pela vida e, por acaso, esbarra no prazer, qualquer tipo de prazer, é aconselhável parar e observar.

 

As ondas internas aumentam de intensidade e reverberam nas paredes translúcidas do cérebro, de lá transbordam e vão lavar a alma. No domingo do dia 23 de março aconteceu comigo mais uma vez. O tal prazer veio da feliz e clara consciência de fazer parte de uma comunidade.

 

Um “útero sócio-cultural” no qual você é acolhido e se reconhece. Um espelho de rostos, atitudes e água em movimento. Você reflete e se refaz. Abri os olhos e lá estava eu na final do SuperSurf em Maresias. 5/6 pés com maré vazante meio fechando naquela hora, meio difícil de varar, mas com tubos internacionais no dia anterior e na maior parte da manhã do próprio domingo.

 

Edgar Bischof e Ricardo Bocão (em primeiro plano). Foto: Ricardo Macario.

O providencial jet-ski da equipe do Romeu Bruno e sua equipe levando a galera para o outside

durante as baterias, depois de cada onda surfada. O pessoal da ESPN me perguntando o que eu achava: ?Acho ótimo. Estes caras não tem que provar que são bons de remada. Isso todo mundo já sabe”.

 

O que o jet faz nestas circunstâncias de mar e ondas é agilizar a volta para aumentar o número de ondas surfadas na bateria. Ou seja, mais ondas surfadas em menor tempo pelos melhores surfistas do país. Até eu, que me considero um soul surfer, purista até, não posso ser contra a introdução de um aparato que melhora o espetáculo e incrementa o número de demonstrações da arte.

 

É claro que no dia-a-dia sou totalmente a favor da remada, parte integrante do free surf. Mas quando foi introduzida no Brasil, em 1972, tinha muita gente que era contra a utilização das cordinhas ( ! ).

 

Nadar fazia parte do esporte. Dá para imaginar o surf sem elas hoje? Claro que não têm motor,

Juninho e Dadá Figueiredo (direita). Dadá foi um dos maiores ícones do surf nos anos 90, época em que ttambém teve patrocínio da OP. Foto: Agobar Júnior.
barulho e diesel, mas o que estou tentando dizer é que algumas inovações são inexoráveis e às vezes parece impossível e inútil lutar contra o progresso, mesmo que ele pareça e até seja, meio ?torto?. Que cada um preserve a postura em que acredita e respeite a dos outros.

 

E isso serve para todos, com ou sem jet. Depois de tudo isso o que me atingiu em cheio foi algo completamente diferente, uma sensação de dèja vú, de já ter visto e estado na seguinte cena antes: Em cima do palanque, do meu lado direito, conversava com meu amigo e ex-patrocinado pela OP, Ricardo Bocão; no microfone da tenda do patrocinador, à esquerda, ouvia a voz de Taiu, meu ex-patrocinado, comentando o evento; à minha frente, dentro da água, fazendo a finalíssima, Peterson Rosa e… Sávio Carneiro, meu ex-patrocinado; na areia Rodrigo Resende era entrevistado para a ESPN por Formiga… meu ex-patrocinado de asa-delta. Sentado na areia Daniks Fischer, meu ex-patrocinado e big-rider, me acenava, cumprimentando de longe.

 

Os aéreos fazem parte do repertório do eterno moleque Tinguinha Lima, que teve um ótimo período defendendo a marca OP. Foto: Reprodução Fluir.
No dia anterior, tive o imenso prazer de abraçar o fenômeno Tinguinha Lima, também um querido ex-patrocinado, que aos 39 anos surfava e entubava nas morras como um menino.

 

Fazia tempo que eu não freqüentava as areias de um campeonato nacional. Nem precisa falar que me senti em casa. A forte percepção de ?pertencer? inalienávelmente a este grupo ficou comigo durante o tempo em que eu andei pela praia depois do término do evento.

 

Encontrei ainda com Renan Rocha, Alfio, Claudijones, Romeu Andreatta, Dragão, e muitos outros. Com Renan conversamos sobre o privilégio de se poder viver como surfista profissional (aliás vejo cada vez mais este sentimento sendo explicitado nas entrevistas por todos, com a maioria dando graças a Deus pelas bênçãos do talento e da oportunidade a eles concedidos), e de como era a época dos patrocínios com mais ?intimidade?, ou seja, quando os surfistas eram patrocinados por surfistas, ?por acaso? também donos de surfwear. Na verdade, patrocinávamos colegas do surf.

 

Taiu durante o Alternativa, na praia da Barra (RJ). Foto: Arquivo pessoal Taiu.
O Bocão tem a minha idade, surfávamos juntos e era meu patrocinado, uma peculiaridade no mínimo interessante no contexto da história do surf mundial.

 

Viajávamos juntos para surfar picos internacionais, como na trip de 1990, quando os donos das marcas Op, Town & Country, Sundek, Lightning Bolt e Fico (eu, meu querido compadre Zé Roberto Rangel, Hermínio Agulha, Zezinho Rego e Fico) dividiram os picos perfeitos de Salsa Brava e Playa Negra, na Costa Rica, com seus respectivos patrocinados, Davi Husadel, Amaro Mattos (o boquinha de Amborê), Tinguinha, Picuruta (talentoso comediante) e Kias de Souza.

 

Neste fim-de-semana era como se eu estivesse cercado pelas mesmas pessoas de dez, vinte, trinta anos atrás, só que transferidas no tempo e espaço para o momento e local presente. Cada um de nós uma célula viva do organismo ?Surf?. O surf no Brasil cresceu

Daniks Fisher também teve passagem pela marca. Foto: Everton Luis.
geometricamente e o número de pessoas envolvidas idem. Estes indivíduos formaram e formam a base, o alicerce, no qual toda a pirâmide se sustenta. De onde sairá um campeão mundial.

 

Culturizar a comunidade informando a origem da evolução das manobras, atitudes e maneiras de viver; de onde vieram e de quem aprenderam os que hoje surfam e vencem, o que foi feito para que isso fosse possível, de que forma e porque, são saudáveis informações que só nos fortalecem. Crescer vendo estes caras surfando dá uma turbinada no aprendizado de qualquer moleque, de qualquer um. Tudo mudou, mas com a mesma essência.

 

Não se poderia imaginar que o primeiro lugar de um evento nacional levasse um carro de R$ 30 mil, ou que a premiação do WCT pudesse chegar aos atuais US$ 250 mil por etapa!

 

Sávio Carmeiro arrepiou no SuperSurf, em Maresias (SP). Foto: Nilton Santos.

A fundação foi boa, a árvore deu bons frutos. Se se pudesse unir os tubos que a surfistada

brasileira tirou nestes últimos 20 daria para ir até Plutão e voltar. Se fundisse o metal de todas as taças levantadas daria para uma estrutura do tamanho do World Trade Center, só que mais sólida, construída com garra, superação e paz.

       

Boa parte do núcleo da comunidade estava ali. Mas era apenas uma amostra do enraizamento profundo que os surfistas tiveram e têm na sociedade. Aquelas pessoas formam uma parte considerável da base da qual o surf se espalhou pelas mais diversas regiões e atividades no Brasil. Encontro surfistas dirigindo importantes empresas, trabalhando em todo o tipo de atividade profissional, e encontro também os que não tem emprego fixo, os que só estudam, os que não fazem nada, os que sonham e os que vivem acordados.

 

Não importa. Em comum, as ondas. Entre o presidente surfista de uma grande empresa e o surfista favelado, apesar das óbvias diferenças sociais, existe um ponto de união discernível somente aos que compartilham dos rituais da tribo. Entre o dentista surfista e o professor de yôga surfista idem. Eles se identificam e se entendem. Há algo na essência de suas vidas que corre no mesmo fluxo.

Ricardo Bocão no Pier de Ipanema. Foto: Fedoca / Revista Brasil Surf.

 

Compartilham uma sintonia, um canal no qual se reconhecem e reconhecem o parceiro. O convívio das ondas os torna irmãos. Se conversarem sobre qualquer outra coisa podem até tornar-se incompreensíveis uns para os outros, mas quando o assunto é surf está re-estabelecida a comunicação. São automaticamente incorporados no dialeto vocabular, gestual e espiritual da ?família?.

 

É isso que se auto-define como ?comunidade?, é isso que nos faz ter maravilhosos dèja-vús pela vida afora, e é isso que nos faz surfar algumas inesperadas ondas de prazer.