Leitura de onda

Corte na carne fraca

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Kelly Slater acredita que há surfistas demais no ASP World Tour. Foto: Aleko Stergiou.

Chegou a hora de cortar na própria carne. A panela de pressão da ASP por uma fatia mais gorda de mercado fritou Rabbit, provocou uma revolução nos critérios de julgamento e, ao fim da parada de Teahupoo, vai mandar para a vala da divisão de acesso 13 atletas que começaram o ano com o status de surfistas da elite mundial.

A ideia aqui não é condenar a entidade, que luta com dignidade pela sobrevivência no mundo competitivo dos esportes. Mas, por trás desse corte, num primeiro olhar, pode haver uma desigualdade de condições sem precedentes – e talvez involuntária – entre as estrelas que habitam a parte de cima da tabela e os outros mortais.

Quem não é amparado pelo seed nas primeiras etapas praticamente ganha um carimbo para a segunda divisão. Além de estar pressionado por resultados imediatos – sob pena de ser rebaixado no meio do ano – o atleta é obrigado a encarar desde as primeiras fases os melhores e mais bem julgados surfistas do mundo.

O corte no meio do ano agrava, na verdade, um problema original da regra do seed. A ideia surgiu de uma intenção aparentemente nobre, explicada no próprio livro de regras da ASP: evitar que os melhores surfistas se enfrentem antes das quartas-de-final. Os primeiros de um ranking atualizado periodicamente pegam apenas convidados locais de cada etapa e os surfistas com menos pontos na temporada.

Até aí, tudo certo. O problema é que a regra foi importada do tênis, esporte com critérios absolutamente objetivos. Bola dentro, no esporte de Roger Federer, é ponto. Nas profundezas subjetivas do surfe, a tal bola dentro de um pode vale mais que a de outro. Portanto, a vantagem acaba sendo muito maior que apenas a diferença técnica – que normalmente existe – entre a estrela e o novato ou convidado.

As inovações da ASP parecem ter sido desenhadas para promover a renovação do esporte, com novos critérios de julgamento impulsionando a molecada talentosa no ranking e o corte agressivo no meio do ano para expelir os ultrapassados. Mas o jogo subjetivo do surfe requer adaptação e tempo. Em meio ano ou cinco etapas, às vezes, um futuro campeão mundial não tem espaço para mostrar o seu valor.

Kelly Slater não vai ser cortado, mas sua opinião sobre o tema é indispensável, por motivos óbvios. O site Surfline ouviu o craque, que não puxou o bico: “Minha opinião não tem mudado ao longo dos anos: acho que temos muitos surfistas no tour. O melhor surfe surge inevitavelmente a partir das quartas-de-final”.

O americano está certo. A seleção natural darwiniana às vezes é indispensável ao crescimento do esporte. De fato, o melhor creme do surfe surge a partir das quartas. Com menos competidores, as janelas dos eventos podem ser reduzidas, e aumentam as chances de um swell cobrir todas as baterias.

Mas, na hora de optar sobre o problema do seed associado ao corte, Kelly também teve dúvidas: “É uma questão difícil (…). Surfe é o produto da ASP e, para ter o melhor produto você tem que encontrar um caminho de apresentá-lo da maneira mais justa. Quem sabe qual é a resposta correta?”.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves, da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".