Nova York fazia os ajustes finais ao maior tributo às vítimas do terror da história quando Owen Wright e Kelly Slater entraram na água para decidir quem ficaria com os inéditos US$ 300 mil do vencedor. Uma grana legal, embora ainda passe longe do US Open de Tênis, que pagará seis vezes mais a Nadal ou Djokovic, nesta segunda-feira, num estádio ali perto de Long Beach.
Bobby Martinez não acredita, mas o surf realmente não tem qualquer relação com o tênis.
As finais de NY foram uma mostra clara disso. A começar pelo público: ninguém pagou ingressos que no Estádio Arthur Ashe chegam a exatos US$ 1.015. Ainda, assim, todos em Long Beach assistiram a um genuíno espetáculo, cheio de variantes, com atletas decididos a buscar novos limites técnicos para o mais belo dos esportes.
E, a despeito das desconfianças em torno das ondas nova-iorquinas, o swell encaixou direito no fundo de areia e as ondas se transformaram numa rampa de lançamento para os surfistas mais inventivos e modernos do mundo. Avançou quem teve coragem para arriscar.
Kelly fez uma das apresentações mais surpreendentes do ano. A disputa contra Taj Burrow desde já entra para a seleta lista de baterias históricas. O americano precisava de uma nota superior a 9 a instantes do fim. Teria que provocar, surpreender, convencer os juízes a eliminar o australiano, dono do surf mais limpo da prova até ali.
A onda era uma direita de uma manobra só. Kelly subiu a rampa e saltou alto para executar o maior aéreo de sua carreira em baterias do WT já visto até hoje. A plateia vibrou
não como se estivesse numa partida de tênis, mas sim numa peleja de futebol.
Gol de placa, nota 10. Taj amargou mais uma vez o destino de ser eliminado por um surfista que, a despeito de seus 39 anos, ainda insiste em elevar o limite do esporte.
Mas Owen tem o tempo a seu lado. Chegou às finais de Teahupoo e Nova York com um repertório natural para um jovem de 21 anos, contra um surfista que estica o elástico de sua longevidade. Na onda, a sensação é a de que ele está confortável no papel de surfista de alta performance, de desafiante do melhor surfista de sua era.
O australiano tem uma compleição física diferente. Parece um faquir, com seus 1,90 metro e 78 quilos. Transforma suas pernas longas em molas de lançamento para aéreos, consegue distribuir o equilíbrio e o peso em cima de uma 6´2´´ fina. A prancha é grande para o padrão do surfista brasileiro, mas menor que Owen.
Depois de perder para o americano no Tahiti, Owen decidiu fazer valer seu potencial de gigante. Isolou-se do oba-oba antes da final, não deu margem ao conhecido jogo psicológico do americano e abriu a bateria de forma avassaladora, como tantas vezes fez seu adversário. Cravou, em sequência, um 7, um 9,23 e um 8, antes que Kelly esboçasse qualquer movimento.
Ganhou com a estratégia que o americano sempre usou para oprimir os outros: atropelar, não dar chance a pensar em reação. Kelly ainda esboçou uma virada e saiu da combinação, mas não conseguiu, como tantas vezes, surpreender nos instantes finais.
A batalha de Nova York, encerrada no dia 9 de setembro, é carregada de significados. Ajuda a consolidar um novo cenário no esporte, do qual deve se beneficiar a nova geração de brasileiros. A ASP reposicionou o WT de modo a tentar viabilizar a combinação de eventos em ondas perfeitas com eventos de público em que a atração será a manobra futurista, o surfista sem medo de cair da prancha. A medida é controversa, mas, em NY, deu certo.
O evento foi parar no jornal mais importante do mundo, o New York Times: a matéria foi publicada na edição impressa do dia 10, assinada pelo repórter Max Klinger, sob o título “Pegando onda e algum dinheiro em Long Island”.
Entre os surfistas, há outros símbolos. Nova York marcou a transição dos goofies. Na etapa em que dois dos maiores surfistas com base no pé esquerdo da história – os americanos Bobby Martinez e o bom Clifton James Hobgood, o CJ – deixaram o WT, o garoto Owen toma para si o posto de líder dos gauches e vence o chefe supremo dos regulares.
Dez anos atrás, no ano em que o terror paralisou o mundo a poucos quilômetros de Long Beach, o mesmo CJ levantava o troféu de campeão mundial. Não venceu qualquer etapa em 2001, mas provou, na última década, com excelentes performances em picos como Teahupoo, que o título da temporada interrompida pelo medo ficou em boas mãos.
A competição agora também ganha um novo desenho. Com o corte do meio do ano definido, o WT segue para Trestles (onda dominada por Kelly, mas que também favorece a nova geração) com o campeonato totalmente aberto e algumas novas pimentas para temperar o caldo das disputas – em outras palavras, os brasileiros Gabriel Medina e Miguel Pupo.
O Brasil, aliás, mostrou em NY por que está na elite. Quando restavam apenas oito surfistas no evento, três eram brasileiros. Dois deles, Jadson André e Heitor Alves, ficaram nas quartas-de-final.
Alejo Muniz mais uma vez mostrou bela combinação de técnica e competitividade para alcançar seu primeiro pódio do ano. Parou apenas diante do faquir australiano. Com os resultados de NY, o bom ano foi consolidado: nenhum brasileiro saiu do tour no corte de NY.
Nem a ASP esperava por essa.
A disputa pelo título, embora ainda esteja ao alcance de outros, parece estar polarizada entre a dupla finalista de NY e Tahiti. Owen está emocionalmente forte. Kelly quer, mais uma vez, provar que pode manter a coroa diante dos ataques cada vez mais agressivos da nova geração.
E, no meio do caminho deles, há uma pá de moleques franco-atiradores, dispostos a tudo para escalar ao topo através das costas pesadas das atuais estrelas do tour.
Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.