O surf espiritual nada mais é que outra forma de apreendermos o mundo. Aumentarmos a percepção. Chegarmos um pouco mais perto do nosso eu divino, do eu real. Numa sintonia desejada e algumas vezes conseguida com o Mar, o Inconsciente Coletivo da Humanidade.
O surf competitivo faz isso? Não. Essa entidade excruciante divaga na lama egóica na qual estamos todos chafurdando, pensando que estamos vivos e atentos. Nesse estado, a mente que mente domina o espaço sensorial a essa altura aturdido, ao mesmo tempo em que nos subtrai a verdade e a beleza, habitantes do tempo perfeito.
O surf espiritual busca o alinhamento com a nossa essência (palavra – mas não significado – gasta, como Deus, como amor, mas ainda válida, dependendo de como você a respire e pronuncie).
O surf competitivo busca reforçar os nossos vícios de agressividade, ilusão do domínio sobre o outro, medo (tenho medo, logo sou agressivo, reativo, preciso competir para me validar ), reforçando a alucinação da posse e de uma permanência inexistente, perpetuando, em última instância, a barbárie. “Ah! Mas milhares de pessoas sobrevivem do Circuito Mundial, dos regionais, etc, etc.”. Sim, sobrevivem, mas, vivem? A maioria faz essa sua obrigação para depois poder surfar sozinho com amigos em algum lugar remoto longe dos palanques….
Para os atiradores de pedra: Os antigos festivais de surf celebravam o prazer, a descoberta de um modo de viver natural e espontâneo, onde a competição tinha um caráter mais leve, de camaradagem, e era apenas mais um dos elementos inseridos na sopa cultural e existencial no qual vivíamos 24 horas por dia, não nos restringindo ao surf ginecológico – mas ao amoroso holístico – e pragmático, não limitando nosso campo de visão. Sim, todos os festivais de surf da época degeneraram para a competição “pura” e predatória.
Não há felicidade possível dentro do ambiente tóxico da competição. Existem espasmos de euforia que podem ser confundidos com felicidade – levantar um troféu, receber um beijo de uma gostosa que está mais afim de aparecer do que te apreciar, “dominar” o outro, ganhar uma caixa de parafina ou um cheque grande estilo Mickey Mouse representando uma caixa de grana.
Uma sala de troféus, não é, em última instância, um cemitério de vasos de metal vazios? Urnas mortuárias. Kelly Slater é feliz? Existe felicidade dentro da obsessão? Sim? Não? A obsessão – possessão? – é por definição uma das antíteses da plenitude, lê-se, felicidade. Quando se compra, se engole até o talo o mito cultural, os vícios de atitude que nos ensinaram ser o caminho, com suas promessas que nunca se completam, com suas sensações estranhas que nunca satisfazem, com aquela intuição dizendo lá no fundo que tudo isso está errado, com suas joias e penduricalhos, shopping-centers, bundas desafiando ao mesmo tempo a estética e a gravidade, conforto anestésico, prazeres eternos que acabam ali com um gosto de nada, BBBs, realização profissional, TV cheia de lixo, a ditadura do prazer, a “vitória” – que vitória?? -, a “realização” e o poder, recebemos, de troco, a miséria existencial. É o único caso de comércio cósmico em que o troco é muito maior que o pagamento.
Pergunte a si próprio: se eu estou fazendo tudo certo porque me sinto tão mal?
O Ministério da Saúde adverte: cuidado, o seu objetivo de vida pode tornar-se a sua prisão.
Ao que a sociedade nos diz que é relevante, você pode olhar por detrás do biombo de neon, purpurina e fumaça colorida que circunda o cenário e, em 100% das vezes, vamos encontrar um monte de merda empilhado, metáfora até leve para uma ilusão perversa que nos rouba o tempo, a vida, quem nós somos na realidade, e quem poderíamos ser com todo o nosso potencial.
Transformando-nos em zumbis inconscientes que lutam desesperadamente a vida toda para conseguir algo que nos faz muito mal, cumprem o plano da Sombra.
Depende de cada um de nós descobrirmos, tocar e emergir da própria Luz. É muita responsabilidade? Não, não é.
Sidão Tenucci é aprendiz.