Em Huntington Beach, não teve demonstração de ira no palanque depois da desclassificação por interferência. Lição aprendida? Provavelmente.
Mas duvido que Filipe Toledo esteja conformado. Um título de US Open, mesmo com aquelas ondas inexpressivas, é um triunfo inesquecível. Huntington Beach é uma praia mítica. Ir à Califórnia e não visitar o píer de HB é como ir ao Rio e não ver a Prainha.
O fato é que há muito tempo não vejo alguém sobrar tanto num campeonato. Filipe Toledo é hoje o surfista mais interessante, empolgante e imprevisível do mundo. Também é o mais veloz e talvez essa qualificação devesse vir antes dos outros adjetivos.
Surf é velocidade. Rapidez na remada, no drop, na linha, nas manobras, rapidez de raciocínio, de reação.
Na primeira vez em que vi Kelly Slater surfar, ele devia ter dezoito anos. O que mais chamava a atenção era a agilidade dele, toda baseada numa capacidade mágica de gerar velocidade onde os outros pareciam estar com o freio de mão puxado. Naquele distante 1990, ninguém imaginava que Slater seria campeão mundial onze vezes. Mas, por causa daquela velocidade, todo mundo percebeu ali mesmo que ele seria capaz de grandes feitos.
Filipe Toledo também é capaz de grandes feitos nas arenas do surf.
A linda vitória em J-Bay, com ondas espetaculares, foi um dos fatores cruciais para fazer do campeonato um dos mais bacanas de todos os tempos. Se qualquer outro surfista tivesse saído vencedor em vez de Toledo, seria uma frustração geral. Os outros competidores sabem disso. Nenhum deles, incluindo JJF e Medina, seria capaz de fazer o que ele fez naquelas direitas.
Resta à turma esperar que ele não supere as dificuldades em ondas grandes e tubulares, perigosas e pesadas. Se superar, não é tarefa fácil, nos próximos anos só vai ter briga pelo vice.
Toledo foi o campeão moral do US Open. Kanoa Igarashi sabe, e isso deve doer, que nunca, nunca mesmo, venceria aquela bateria se não fosse pela interferência, pelo erro do Filipe.
Um erro de excesso de gana. Mas é muito melhor sofrer de excesso do que de falta de gana. A ousadia se controla com treinamento mental. Quando a pilha é fraca, longe de ser o caso aqui, nem adianta forçar a barra.
Tenho amigos que não viram interferência na disputa. Dizem que a direita era melhor, que Filipe vinha de trás do pico, que ficou em pé primeiro na prancha. Tudo isso é verdade. E nada disso serve para mudar o fato de que aquela onda era do Kanoa.
Quando uma discussão como esta parecer complicada, faça um teste hipotético. Submeta a situação ao seu pico de surf. Pense no comportamento dentro d’água no seu dia-a-dia.
Você se colocou no centro do triângulo, escolheu seu lado. O mar está facilzinho, merrequinha, moleza de entrar em qualquer lugar da onda. Vem um cara por trás do pico. O cara grita com você, que já está no meio da remada. Vai deixar a onda para ele? De jeito nenhum. Você pensa que o outro deve saber muito bem de quem é a vez.
Esse outro é o típico fominha. Existem muitos.
Em uma temporada recente, um grupo de amigos, incluindo Rodrigo Resende, surfava Macaronis num dia bem mais ou menos, vento errado e swell médio. Na água estava também um dos melhores surfistas brasileiros na Indonésia. A cada onda que ele pegava, remava de volta passando por todo mundo e dropando de novo a melhor da série bem atrás do pico. Fez isso algumas vezes. Deixou todo mundo irritado.
Então, depois de ultrapassar mais uma vez todos que estavam esperando havia tempo no pico, ele dropou mais uma da série. Rodrigo não teve dúvidas. Entrou bem na frente dele e surfou a onda toda. Quando voltou para o pico, ouviu: “Pô, Monster, não te vejo há dez anos e você entra assim na minha onda?”. Rodrigo respondeu de bate-pronto: “Puxa, desculpe, achei que você ia pra direita”.
A regra do circuito mundial deve ser o mais próximo possível da etiqueta correta no mundo real. A onda era do Kanoa e Filipe Toledo foi fominha. Sem motivo. Farinha pouca, meu pirão primeiro? Não funciona assim. É necessária alguma elegância que talvez venha com a experiência.
Não tem conspiração contra brasileiro aí. Pode até haver em outras situações, pois não dá para ser ingênuo. Mas os dois erros idênticos de Filipe Toledo, em Saquarema e em Huntington, estão na conta do seu voluntarismo.
Aos 22 anos, Toledo é um fenômeno do surf. Ainda tem uma ou duas coisas a aprender. Coisas que outros grandes surfistas já sabem.
A questão é se esses outros grandes surfistas serão capazes de aprender o que Filipe Toledo já sabe fazer. Provavelmente, não.