Muitas águas

Foi só um caldo em Teahupoo

Um segundo de atraso e a vida deste surfista estaria em jogo

Visual inconfundível de Teahupoo, Tahiti. Foto: Motaury Porto.
Surpresas. A vida é cheia delas. A “equação” da vida é dinâmica, com muitas variáveis. Lidar com elas, saber interpretá-las, fazer a leitura correta de cada experiência da vida é algo tão grandioso e complexo que só mesmo o Criador do universo pode nos conceder.
 
No final do último mês de abril tive uma dessas surpresas. Uma agradável surpresa. Meu trabalho de fotografia com surf, principalmente as viagens internacionais, estava há dois anos sem nenhuma novidade. Como tenho fotografado arquitetura, eventos, algumas fábricas e mesmo editoriais para revistas e alguns clientes do próprio mercado de surfwear, sentia falta de uma trip “surfística” de verdade.
 
Do canal o show é garantido. Foto: Motaury Porto.
Deus, que tudo conhece, e sabe o tempo e a hora certa de tudo, fez o telefone tocar numa linda manhã de outono. Do outro lado da ligação era o big rider Everaldo “Pato” Teixeira. Por incrível que pareça, na minha última viagem ao exterior para fotografar surf, nas Ilhas Samoa, em Abril de 2002, fôra meu o convite feito a ele para ir viajar.

 

Agora era ele que calmamente me falava como quem convida um amigo pra tomar um café na padaria do bairro: “E aí Motaury, o que você vai fazer esta semana?”. Respondi a ele que tinha vários compromissos, mas que estava tudo em ordem. “Porquê Pato?”, respondi. “É que preciso de um fotógrafo para ir ao Tahiti amanhã às sete horas. Estou monitorando um swell pela internet e vou fazer tow-in em Teahupoo. O mar vai estar grande, bem grande! Vamos lá?”.

 

Um segundo de atraso e a vida deste surfista estaria em jogo. Foto: Motaury Porto.
Uau, pensei comigo mesmo no telefone, o que é isto, Deus? Quase não me contive com o convite. De cara fui perguntando: “E aí Pato, quanto vai me custar?”. “Leva ‘só’ uns dólares, pois a passagem e a ajuda de custo está no meu orçamento”, respondeu tranqüilo Pato.
 
Resumindo; após despedir da minha noiva, dos meus filhos e familiares, estava de fato no aeroporto de Florianópolis, às 6:30 horas da matina, com minha mala e equipamentos fotográficos. Pato e sua esposa Fabiana logo chegaram e numa seqüência de vários vôos e muitas horas (muitas mesmo!), chegamos dia 21 de abril no Tahiti, mais precisamente em Teahupoo.

Vou ser sincero, o Tahiti já estava em meus pensamentos fazia muito tempo e ao descer na fresca noite ali em Papeete, recebido por uma família  tahitiana, amiga do Pato, no melhor estilo polinésio, foi bem melhor do que eu poderia imaginar.

 

Visão do surfista no outside da temida bancada taitiana. Foto: Motaury Porto.

Eu não tinha idéia da amizade que faria com aquelas queridas vidas, os lugares maravilhosos que conheceria, as paisagens mais belas que meus olhos veriam, as fotos que traria em minha bagagem de volta, as ondas poderosas que presenciaria a poucos metros de minhas retinas, ou melhor, até que seria literalmente envolto, “sacudido” por uma delas. Ah, sim, “apenas” um caldo em Teahupoo.
 
Bom, como todo surfista interado que se preze sabe, Teahupoo, a temida onda no Tahiti, tem sido o sonho e o pesadelo de muitos surfista mundo afora, vide a experiência traumática e quase fatal de nosso surfista brasileiro Neco Padaratz.

 

Eu tenho fotografado surf no Brasil e mundo afora desde o final da década de 70, quando iniciei no esporte, dando minhas primeiras remadas na praia das Pitangueiras, no Guarujá. Alguns anos depois estava

Independente de raça ou língua, o drop em Teahupoo é sempre radical. Foto: Motaury Porto.
fotografando por lazer e depois profissionalmente, à medida que o esporte e a mídia especializada cresciam.

 

Por pegar onda e ver muitas revistas gringas desde cedo, me interessei em fotografar também de dentro d’água, com uma Nikonos IV (câmera própria para fotos profissionais de mergulho) e posteriormente com caixas estanque. Afinal, foi dentro do mar que vi as imagens mais impressionantes que o surf pode oferecer, então daí a vontade de traduzir estas imagens em fotos e compartilhar com outros.

 

Não posso me considerar, e não sou mesmo, o fotógrafo mais destemido nem o mais experiente no Brasil ou no mundo, mas tive a oportunidade de estar em muitos mares e oceanos, fotografando e me arriscando muitas vezes, para tentar obter aquela imagem ímpar.

 

Encarar alguns mares no Brasil, nos reefs do Pacífico (Indonésia), no Hawaii (Pipe, etc…), ou beach-breaks do mundo como no México (Puerto

O local Marama sempre à postos no barco. Foto: Motaury Porto.

Escondido, Pascuales, …) fizeram parte destes anos todos da minha carreira de fotógrafo de surf. Teahupoo era novidade para mim. Um desafio também, pela onda que é.

 

Voltando à nossa história com o Pato, em abril deste ano, poucas semanas antes da realização da etapa do WCT no Tahiti, o swell que nosso big rider tanto cercou acabou por dar os ares de sua “graça”, se é assim que podemos chamá-lo. Ondas descomunais de 15 pés ou mais, literalmente sacudiram as bancadas de corais e Teahupoo teve algumas de suas maiores ondas surfadas neste final de abril, com as melhores duplas de tow-in do mundo na arena.

 

A chuva era torrencial e uma série de imprevistos (um barco avariado) me impediram de fotografar o Pato na hora H do swell. Dois dias após este magnífico swell o mar “abaixou” radical e se manteve na faixa dos 4 pés por quase duas semanas. Faltando pouco mais de 48 horas para nosso retorno ao Brasil,

Com a massa de água atrás, o negócio é botar reto e fugir do espumeiro. Foto: Motaury Porto.
Teahupoo voltou a subir. Era o dia da final do trials do Billabong Pro Teahupoo 2004. Na água Bruce Irons, Sunny Garcia e muitos pros de todo o mundo e do Brasil. Um mar que não aceita erros e cheio de surpresas. A minha estava a caminho. Foi um final de tarde de 6 pés.

 

Ondas pesadas. Fui pra dentro d’água fotografar e vi alguns dos tubos mais lindos de toda minha vida, surfados com maestria pelos melhores do  mundo. O mar aumentou um pouco mais no dia seguinte e, como estava confiante após minha primeira sessão de fotos em Teahupoo, fui logo caindo pra dentro. As séries já estavam com 8 pés. Ondas deste tamanho já são pesadas em volume d’água em qualquer parte do mundo. Em Teahupoo ela tem outra dimensão, outro volume, outro peso. E isto eu pude “conferir” pessoalmente. As séries entravam e rapidamente eu me deslocava para o canal. Dentro do mar mais uns poucos fotógrafos e um videomaker.

 

Não teve jeito, ela chegou e nos pegou de jeito.

O crowd de barcos e espectadores no canal é tão inenso quanto no line-up. Foto: Motaury Porto.
Eu vi que não daria tempo de escapar dela e tão logo vi aquela montanha d’água quebrando a poucos metros à minha frente, mergulhei com os olhos abertos e na transparência daquele mar, vi tudo ficando branco com a espuma turbulenta desta onda invadindo cada centímetro cúbico ao meu redor. Tão logo me atingiu, fui atirado para baixo, em direção aos corais, e após duas cambalhotas aquáticas bati com toda força meu pé de pato no reef e depois minha própria caixa-estanque.

 

Àquela altura, já estava bem perto da rasa bancada de corais e literalmente com o coração na boca e tentando, em vão, nadar contra a forte correnteza para o canal de Teahupoo. Já havia dado como perdido meu equipamento e imaginei vê-lo cheio d’água. Mas por um milagre a caixa não havia partido, mesmo após o forte impacto. Outro que ocorrera é que não entrou mais nenhuma onda após aquela bomba de 8 pés, e lentamente fui chegando ao canal de Teahupoo onde ficam os barcos.

 

O local Raimana Van Bastolear em foto de Tim Mackenna publicada na Fluir de maio, uma das maiores ondas já registradas no pico. Foto: Reprodução.
Recuperei as forças e os ânimos, ainda na água, apenas me segurando no nosso barco de apoio pilotado pelo fiel amigo tahitiano Marama, enquanto ele estava na poita do canal.

 

Resolvi ir pra ação de novo, pois se não fosse assim, poderia ficar com aquele “caldo” na cabeça por muito tempo, o que me  poderia causar problemas futuramente. Passado o “susto”, fiquei mais uma hora vendo e fotografando a centímetros de minhas retinas, talvez as imagens mais lindas que um surfista ou um simples mortal possa ver em sua existência aqui neste planeta. Foi uma experiência e tanto e um desafio fotografar Teahupoo e ver a insignificância das minhas forças diante daquela situação.

 

Trazendo para a vida diária este caldo numa onda de 8 pés em Teahupoo, pude meditar que apesar de muitas vezes enfrentarmos situações adversas, problemas das mais diferentes naturezas, alguns deles até de certa forma desesperadores, o “canal” é possível de ser alcançado.

 

Nem que não seja por suas próprias forças ou meios, Deus, aquele que criou os mares e oceanos e também a onda de Teahupoo, pode e quer nos livrar dos nossos “caldos” – surpresas muitas vezes desagradáveis que a vida apresenta. Tem sido assim comigo, pode ser assim com você. The search, a busca. O caminho, a caminhada…

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