Trip ambiental

Forte dos sonhos

Jacqueline Silva, Billabong Eco Festival 2008, praia do Forte (BA)

 

Jacqueline Silva durante o Billabong Eco Festival realizado praia do Forte (BA). Foto: Pedro Campos.

Brasil, ano de 1977. Um grupo de estudantes universitários encontra no mapa um pontinho de terra no Atlântico sul e começa a organizar uma das trips mais importantes e perigosas da época. Decidiram embarcar de carona em um barco sujo e cheio de baratas que regularmente visitava o local para pescar.

 

Era o único jeito e segundo o conhecimento adquirido com os pescadores, descobriram que o lugar era ainda mais inóspito do que imaginavam. Nem mesmo água doce existia no local. Mesmo assim, a vontade de explorar um lugar desses era grande. O sonho de conviver em harmonia com a natureza e o flower power guiavam os famosos aventureiros românticos da década, dando-lhes coragem e determinação.

 

Ficou decidido que o grupo ficaria em terra firme enquanto os pescadores trabalhavam em volta do Atol e que teriam poucos dias para obter o resultado esperado. Você já deve estar se perguntando: E aí? Encontraram as ondas? Fundo de pedra? Tubo? Para falar a verdade, e já me desculpando por decepcionar vocês, não encontraram ondas, nem estavam atrás delas, muito menos atrás de um lugar para fundar uma nova comunidade hippie. 

 

Tinham outro objetivo, não muito diferente dos surfistas. Uma citação do livro “Assim nasceu o Tamar” – que narra os primeiros 25 anos do projeto – materializa em palavras todos aqueles sentimentos: “chegar a lugares absurdos, praias desertas e distantes, de preferência aonde ninguém houvesse chegado antes,  poder pesquisar, conhecer e assim defender o litoral brasileiro e seu rico eco-sistema.”

 

Essa vanguarda, nascida no seio do ambientalismo acadêmico brasileiro – Universidade do Rio Grande (RS) – encontrou no Atol das Rocas, único do atlântico sul,  uma cena agressiva e marcante: várias tartarugas sendo abatidas enquanto subiam à praia para desovar. Tudo foi fotografado. 

 

Essas imagens, até então inéditas, foram muito importantes para a criação da reserva Biológica do Atol das Rocas e do projeto Tamar. Afinal, era a primeira vez que tartarugas marinhas eram vistas e fotografadas por pesquisadores no Brasil e a matança indiscriminada assustou autoridades, acadêmicos e estudantes.

 

A partir dessa viagem vários outros picos foram visitados pelo grupo e alguns importantes destinos como Fernando de Noronha (PE) , Ilha de Trindade (ES) e Abrolhos (BA), serviram de ponto de partida para outros projetos de preservação ambiental no Brasil.

 

Rocas Cinco anos depois, a par de toda aquela riqueza de vida marinha, os oceanógrafos, agora formados, participaram de outra expedição para o Atol das Rocas: um grupo de pesquisadores ficou responsável pela observação das tartarugas marinhas dentro de uma grande equipe de especialistas formada para catalogar sua fauna em dois meses.

 

Na época estavam sendo feitas, especificamente,  as primeiras pesquisas sobre as tartarugas marinhas, o projeto Tamar engatinhava e Rocas seria um local importantíssimo para a coleta de dados, uma vez que a alta incidência de tartarugas em suas piscinas naturais e praias era uma certeza.

 

Nos meses seguintes à expedição, com diversos dados coletados sobre as tartarugas, os pesquisadores passaram a visitar as praias do continente. Divididos em grupos, iam onde havia rumores de presença dos animais. Receberam ajuda de alguns órgãos estatais, estudantes e pescadores.

 

Descobriram que as tartarugas começavam a desovar a partir do litoral norte fluminense até o Oiapoque, próximo à fronteira com a Guiana Francesa e mapearam as espécies que ocorriam na costa brasileira. Passaram a visitar essas comunidades praieiras, cumprindo não só o papel de pesquisadores, mas de fiscais da recente lei que proibia a caça das tartarugas e a retirada de ovos dos ninhos.

 

Tartarugas centenárias, fundo de pedra e tubo seco Uma dessas comunidades visitadas detêm não apenas o título de praia com a maior quantidade de desovas de tartarugas marinhas do Brasil como também tem para muitos as melhores ondas do litoral baiano.

 

A Praia do Forte, localizada  aproximadamente a 75 km ao norte de Salavador, não por menos, é a base nacional do Tamar. Em junho de 1982, chegar à praia do Forte não era tão fácil como hoje em dia. A péssima estrada de terra dificultava muito. Vencido o perrengue, era preciso atravessar o Rio Pojuca – numa  balsa rústica que não possuía motor – e confiar no balseiro, que, com a força dos braços, vencia a correnteza e atravessava o rio.

 

Para terminar, cinco quilômetros de trilha em mata virgem até a vila da praia do Forte. Quando os pesquisadores finalmente chegaram, encontraram uma única rua que cortava a vila, uma antiga igrejinha, uma praça com um cruzeiro, ao lado, um farol e um posto da marinha desativado.

 

Não foi muito diferente do que encontrei vinte e cinco anos depois, a não ser pela facilidade de chegar num ônibus comum, por uma estrada boa, sem precisar de balsa. Todo mundo que chega na vila cumpre o ritual de andar pela rua principal que corta o povoado até encontrar o mar.

 

Quando meus olhos tocaram o horizonte viram duas bancadas expostas: uma à esquerda e outra à direita, com um vão no meio, formando um porto natural. Para os dois lados, até onde a vista alcançava, coqueiros e mais coqueiros.

 

Já tinha escutado relatos empolgados das ondas e na hora boa da maré, logo no primeiro dia, vi do canal, um local surfar um tubo seco, limpo, e perfeito na bancada da esquerda, era o Papa Gente funcionando em condições clássicas. De 1 a 2 metros de onda em séries constantes e sem vento, água quente e tartarugas enormes passeando entre os surfistas no outside.

 

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Sede do Projeto Tamar na praia do Forte (BA). Foto: Juninho.

Nesse local mágico e perfeito os pesquisadores começaram a interagir diretamente com a comunidade local. Entrevistaram os nativos e perceberam duas coisas: primeiro, a relação das comunidades praieiras com as tartarugas variava nas localidades.

 

Haviam visitado Pirambu – Santa Isabel (SE) e Regência – Comboios (ES), e a diferença da cultura pesqueira desses lugares para a praia do Forte surpreendeu. Além de relatos de um número bem grande de desovas, descobriram que alguns ninhos permaneciam intactos e que a comunidade já havia visto filhotes de tartaruga, diferentemente dos outros lugares, onde os ninhos eram praticamente todos destruídos e quase não havia relatos de filhotes. O segundo ponto é que o envolvimento da comunidade da praia do Forte seria mais fácil e menos agressivo culturalmente.

 

Em uma enorme coincidência o primeiro latifúndio do Brasil datado de 1549 e antiga propriedade de Garcia D`Avila, (aquele das aulas de História do segundo grau, que veio para o Brasil com Thomé de Souza, primeiro governador geral) se transformou na base mais importante do Tamar.

 

No verão do mesmo ano, os pesquisadores já estavam de volta para a primeira temporada de desova protegida pelo Tamar. Feita simultaneamente em Regência-Comboios e Pirambú-Santa Isabel, o primeiro ano serviu de experiência. Placas de advertência foram distribuídas pelas praias da região, ninhos foram demarcados e protegidos por um cercado dando início a um longo e penoso caminho.

 

Plantando consciência e amizade É claro que a cultura dos povoados praieiros teve que ser modificada para que fossem interrompidas a matança das tartarugas marinhas e a destruição dos ninhos nos locais de desova.

 

Na década de setenta, ovos de tartaruga eram petiscos disputadíssimos nos botequins, a carne de tartaruga era servida em restaurantes e seu casco era uma grande fonte de matéria-prima para fabricação de jóias e objetos manufaturados.

 

Isso, conseqüentemente, aumentava os ganhos dos pescadores de tartaruga, que tinham o nome de tartarugueiros ou carebeiros. Para se ter uma noção do real perigo de extinção desses animais, existem relatos daquela

época de comunidades que nunca haviam visto filhotes nascerem dos ovos.

 

Acreditavam até que não existiam animais dentro dos ovos e que eles fossem apenas alimento que a tartaruga vinha depositar na praia, como se a tartaruga fosse uma “galinha do mar”. 

 

O grande contraponto era os tartarugueiros. Eles não queriam nem podiam perder seu emprego, sua atividade deveria ser substituída para que não morressem de fome ou se revoltassem e o projeto sentia-se responsável por essa recolocação. Nada mais justo, afinal matar tartarugas era parte da cultura local.

 

No começo foi difícil, alguns resistiram e continuaram matando os animais. Mas o medo de ir para a cadeia e, principalmente, a conscientização, persuasão e insistência dos biólogos e pesquisadores falaram mais alto. Utilizaram o conhecimento daqueles homens para o bem do projeto.

 

Eles, mais do que ninguém sabiam onde as tartarugas apareciam com maior freqüência, podiam levar os pesquisadores até os locais e fornecer detalhes preciosos de hábitos, condição de maré e até fases da lua mais propicias à desova.

 

Estes homens acabaram se tornando funcionários assalariados do projeto, prática que se tornou invariável em todas as comunidades que possuem bases do Tamar e que, ao longo do tempo, vem sendo a locomotiva de um projeto que, por conseqüência, acabou se transformando em socio-ambiental.

 

O Tamar hoje é um modelo a ser seguido e um dos mais bem sucedidos projetos ambientais de todo o mundo, ganhador e merecedor de diversos prêmios, inclusive o considerado o Nobel do meio ambiente,  apesar de sofrer resistência em meios acadêmicos.

 

Alguns sociólogos dizem que as pesquisas são muito superficiais, ao mesmo tempo em que impõe mudanças significativas na cultura e costumes das comunidades, prejudicando seu curso natural. Isso fica evidente na praia do Forte, sede e base nacional do Tamar onde, apesar do projeto ter trazido comida para a mesa dos moradores e desenvolvimento como saneamento básico, calçamento e energia elétrica, acabou por afastá-los de suas raízes  esfriando seus costumes.

 

Ah! As ondas! Sim, elas estão lá! Mais perfeitas que nunca, tanto no Papa Gente, como em Catinguiba, dois fundos de pedra incríveis bem na frente da base do projeto.

 

Para quem tem muito surf no pé e disposição para encarar um crowd de locais que, além de surfar muito e descer as melhores, não admitem gritos, nem rabeadas, o famoso, “indonesiano” e temido Scar Reef em Genipabu é a pedida. A onda é uma direita perfeita, o inside é raso e perigoso, tubos secos e longos podem ser surfados, nos maiores dias, botinhas e capacete são aconselháveis.

 

Sobre os nossos heróis vanguardistas da universidade do Rio Grande e sua missão atualmente cumprida, devemos agradecimento e respeito. Algumas poucas vezes, as pessoas usam sua coragem e conhecimento, não só para interpretar o mundo e se dar bem na vida, como para modificá-lo para melhor.

 

E se algum de vocês envolvidos nessas histórias estiverem lendo essa matéria agora, gostaria que soubessem que o caminho que vocês trilharam e abriram está sendo seguido.  

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