Peru 1972 - Fiji 1986

Impressões de um surfista

0

 

O horizonte servia para pousar os olhos e esperar a próxima série… Foto: Motaury.

Peru, 1972

 

 

Não, eu não tinha bigode, eu usava amor e uma prancha. As ondas me despiam, quase sempre lavando tudo de estranho e errado e amargo. O horizonte servia para pousar os olhos e esperar a próxima série e seus mistérios, sempre diferentes. Com 18 anos eu não era nada mas me sentia tudo. Deixei os cabelos queimados do sol nos ombros, e o pensamento no invólucro de uma paixão perene. Pedi carona nas carreteras peruanas rumo às águas frias do Pacífico, com seus leões marinhos que beijavam os pés dos amigos lá fora das longas arrebentações, suas algas que nos enredavam e sugeriam parcimônia, e o seu vento que nos sintonizava com um deus invisível. Eu era algo que queimava por dentro, algo que queimava o tempo todo, mas nunca se consumia. Eu não tinha bigode, mas canções, sonhos, odes? Eu abraçava os amigos e chorava de felicidade porque no fundo de coral da minha alma eu sabia que a vida é breve para quem ama e um átimo de segundo para quem não. Eu queria abraçar o mundo com a minha vontade, cruzar todos os mares, olhar cada rosto e ouvir cada voz. Eu queria amar todas as mulheres e experimentar tudo enquanto surfava todas as ondas do universo. O meu apetite era do tamanho da minha estupidez. Graças a Deus.

 

A onda de Cloudbreak, como toda onda, me levava para onde queria… Foto: Bruno Lemos.

Cloudbreak, Fiji, 1986

 

 

Cloudbreak, ok, também é um belo lugar, mais por não ter acontecido nada de sensacional, como o tsunami, por ex. Gira em torno do feeling puro do surf em um pico isolado. Não é sensacional, é puro. Não é adrenalina de desgaste, é adrenalina de construção. Ao surfar, parecia que a prancha estava no ar. Uma água tão clara que eu não conseguia distinguir entre a parede da onda e a superfície do oceano. Amalgamavam-se, fundiam-se no mesmo plano. Diluia-se a fronteira entre o vertical e o horizontal, a onda e o mar conviviam na mesma dimensão. Eu acrescentaria “profundidade”, aparentemente infinita, fazendo com que a primeira sensação fosse de estar suspenso, de alguma forma perdido no ar. Nesse estágio só a confiança irrestrita no meu próprio instinto me mantinha de pé na prancha. Não haviam parâmetros racionalmente confiáveis. Só um movimento de água percebido pela pele, não pelos olhos. A onda de Cloubreak, como toda onda, me levava para onde queria. Eu só acompanhava o seu fluxo. Ela, o meu desejo.

 

Tavarua é a ilha da piada do náufrago: coqueiros cercados de areia branca por todos os lados. Um anel de coral circundando a ilha num perímetro maior, formando uma laguna transparente. Fora do círculo o oceano e, mais além, no meio do mar, Cloudbreak.

 

1986. A vontade de me jogar no mundo era, como sempre, forte. Nos moldes dos navegadores do séc XV, ao mesmo tempo em que eu receava o fim do mundo, queria conhecê-lo mais do que tudo. Tinha certeza de que não cairia pelas bordas do planeta. Hoje os limites são outros: emocionais, espirituais, infinitos dentro de mim, não externamente. Uma queda sem volta, nessa circunstâncias, era sempre potencialmente possível. Mais um motivo para ir. Planejei essa viagem para Tavarua, essa pequena ilha no arquipélago de Fidji.

 

Uma procura pela solidão, pelo encontro consigo mesmo através do encontro com as ondas,se eu tivesse sorte e o coração aberto. 

 

Eu sabia que seria um dos primeiros senão o primeiro brasileiro a surfar ali. Isso me dava uma refrescante sensação de “inédito”, de descoberta, de renascimento sobre renascimento.

 

Cloudbreak quebra no meio do oceano, um fundo de coral longe dois kilometros de Tavarua. A sensação de surfar sozinho no meio do Oceano Pacífico, esperando a ondulação, sem ponto de referência a não ser o pequeno bote de borracha no canal reforçava o caminho do encontro com a minha própria alma, às vezes louca, outras, estranhamente calma. Sem estática, sem interferência.

 

À noite, sob o céu estrelado, deitava-me de costas na areia, nu, sentindo-se como se fosse o primeiro Homem sobre a face da Terra. Ou o último.

 

As pequenas cobras venenosas que surgiam sinuosamente do mar pareciam estar dormindo. Eu pouca vezes estive tão desperto no calmo escrutínio das milhões de estrelas que brilhavam como se fosse a primeira vez.

 

Sidão Tenucci é diretor de marketing da OP Ocean Pacific, jornalista (ECA/USP) e escritor. Publicou o livro Almaquatica ( Fnac ), em parceria com o fotógrafo Klaus Mitteldorf e o designer gráfico David Carson, e O Surfista Peregrino ( Livraria Cultura ). Lançará em breve Poentes de Amor, ilustrado por 56 artistas plásticos. Deu uma geral em 52 países e continua arrochando o mapa-múndi (hoje Google Earth).