Tobago – 1994
Meu amigo, o fotógrafo Paulo Vainer, deu um toque que havia um tal de Pelican’s Point na ilha de Tobago, no Caribe, que valia a pena conferir. Tobago é a gêmea menor, mais charmosa e menos populosa da dupla Trinidad e Tobago.
Meu impulso santo de rolar por estradas, chapinhar por vales e rios, acariciar e cutucar ondas e acessar aeroportos compulsivamente se traduz, no início, por uma espécie de comichão no estômago que precisa ser liberto ou irá – com toda a certeza – me consumir as entranhas. O bálsamo para esse mal-estar é ir. Fui. Na pressa nem levei prancha. “Deve ter umas por lá”, pensei. Eu estava certo.
Quando dobrei a curva que dá para a baía, depois de me instalar na estratégica pousada, já vi que a coisa era boa, muito boa. Linhas claras e constantes de pelo menos seis pés rolavam do point, bem distante no extremo da baía, até a quase a praia. O verde da água quase não era cor de tão transparente.
Por US$ 7 aluguei uma funboard que me pareceu mais ajeitada e corri para o canal. Baixou uma euforia tipo daquelas que eu sentia quanto era garoto e entrava nas ondas do Guarujá. A diferença é que esse lugar era inédito. A sensação, no entanto e estranhamente, depois de 26 anos de surf (na época, hoje, 44), não havia se modificado. Uma das pouquíssimas coisas que permaneceu exatamente a mesma na memória emocional.
Aparentemente o sentimento autêntico não gasta, envelhece ou se esvanece no ar rarefeito dos tempos. Lá fora alguns poucos gatos pingados, rastas e gringos sentados no line-up e as séries comendo. Dropei. Demorei alguns segundos para acostumar com a sensação de estar realmente sobre as águas, quase no ar. Os corais pareciam mais próximos do que seria razoável, “porque extremamente visíveis”, pensei. A onda era forte, mas amigável. Da espécie “sou acolhedora, mas não folga!”.
Todo o meu corpo se arrepiou pela maneira com que a prancha deslizava fluidamente, como se tivesse nascido para isso e tivesse comigo, naquele momento, um amor à primeira surfada. Eu ia de carona, mas um carona que rapidamente se incorporou ao veículo e fez dele parceiro. Sorri mais uma vez. Remei de volta. Outra onda, outro frisson de prazer, outro sorriso. Sentei na prancha para observar os arredores e me localizar no mundo. Para quê? Veio outra onda, outra presente, outro prazer, outro sorriso. Chega de pensar. Obrigado, Vainer.
Canadá – 1983
Toda a vida existente no planeta gira em torno do encontro sexual, do impulso da criação.
Como diria o poeta: “Se uma nova beleza, antes desconhecida e impalpável, nasce no horizonte dos sorrisos – linda boca! – dos dias lentos, eu apanho e observo, pétala a pétala, gole a gole, suspiro a suspiro, como quem traduz o inferno para a paz e confirma a fôrça do próprio destino.”
Montreal não é exatamente a Meca do surf, não existem minaretes ou cânticos intercalados nos dias supercivilizados, mas calhou de estar no caminho de uma das minhas idas-e-vindas, com a vantagem de eu não ter estado lá. Ser um lugar desconhecido é um quesito irresistível. O fato de não conhecer um lugar já o torna imediatamente prospect: “se você não comer não vai saber se gosta”, já dizia a minha mãe olhando para o brócolis – e todas as mães do mundo diriam o mesmo.
Logo de cara já deu para perceber que não era primeiro mundo, mas primeiríssimo mundo. O primeiro sintoma de que o buraco é mais embaixo é a geral no aeroporto. Quando mais bacana o “condomínio-país” menos seus habitantes querem repartir a piscina e suas diversas benesses com os duros do terceiro, quarto e quintos-dos-infernos mundos.
Ruas impecáveis, serviços idem, rostos impassíveis, uma beleza não só antisséptica, não sejamos injustos, mas também humana, no sentido “clean” do têrmo. Os próprios norte-americanos consideram o Canadá como um EUA up-grade, inclusive e principalmente no sistema de saúde. As mulheres são bonitas, mas não especialmente.
Nessa parte do país a língua oficial é o francês, embora a maioria da população seja bilíngue. Eu moraria lá? Sim, talvez durante um tempo, para dar um tempo da miséria, da ignorância, da corrupção, da sujeira e do descaso, e poder andar tranquilo pelas ruas. Depois voltaria: quem resiste à amorosidade brasileira?
Sidão Tenucci é escritor e diretor de marketing da OP (Ocean Pacific). Publicou o livro Almaquatica (Fnac), em parceria com o fotógrafo Klaus Mitteldorf e o designer gráfico David Carson, e o livro de aventuras zen “O Surfista Peregrino” (Livraria Cultura). Lançará em setembro o seu terceiro trabalho, “Poentes de Amor”, ilustrado por 55 artistas plásticos. Viajou por 52 países conhecidos, algumas periferias remotas e por outras nem tanto.