Tahiti – 1983 - Cambodia – 2011

Impressões de um surfista V

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Em 1983 não se sabia muito sobre as ondas no Tahiti. Foto: Bruno Lemos / Lemosimages.com.

Tahiti – 1983

Eu já tinha estado duas vezes no Hawaii, e sabia que a origem do povo havaiano se origina na Polinésia Francesa, no Tahiti.

Os caras foram de canoa, guiando-se pelas estrelas, pelas correntes e pelo voo dos pássaros, há centenas de anos, bem antes do Capitão Cook detonar a população do arquipélago, em 1778, com sua gripe, sua sífilis e sua gonorréia.

Dos 300 mil habitantes das ilhas havaianas unificadas pelo rei Kamehameha, restaram 40 mil, apenas 20 anos depois. Isso é o que eu chamo de limpeza étnica. Esse fato, longe de ser uma exceção, era considerado apenas um efeito colateral pelas impérios colonizadores do séc XVIII e XIX.

Em 1983 não havia muito informação sobre surf no Tahiti. Eu sabia que deveria ter onda, considerando que são ilhas no meio do Oceano Pacífico, mas, sem um surf report apurado, numa era pré-internet, e sem viagens anteriores documentadas com eficiência, não dava para saber.

Logo que cheguei, por algum motivo que não recordo, tive a impressão de que a ilha de Papeete não tinha onda, ou não era o melhor lugar para o surf. Conversando com uns locais, recebi uma dica preciosa.

No dia seguinte peguei um aviãozinho e fui parar em Huahine. Uma ilha semi-remota, semi-deserta e inteiramente linda. Apenas alguns veleiros balançavam, ancorados na paradisíaca Baía de Faro, pintada com todos os tons de esmeralda.

Bem em frente ao bangalow, mas há uma distância difícil de avaliar, uma esquerda quebrava, lá longe, no meio da baía. Não dava para saber o tamanho. Como sou goofy-footer, tenho uma tendência a falar de “esquerdas” com certa intimidade. Ilusão: nem todas as esquerdas querem ser íntimas.

Do lado direito, mais perto da praia, uma direita irada. Nela, deu para ver dois pontinhos riscando a água, como frenéticos personagens de desenho animado. Esses dois caras surfaram duas ondas em seguida. Como se fosse hoje lembro do segundo surfista passando uma seção bem grande, cavada, rápida e espessa.

Mesmo de longe dava para perceber. Ele saiu voando na junção, de ponta cabeça, o vento espalhando a espuma da crista num forte spray, enquanto a prancha ia estilingando, em seguida, bem em cima dele.

Peguei a prancha e comecei a remar na laguna em direção à esquerda. O fim da tarde não iria demorar, senti que era melhor me apressar porque a bancada parecia longe. No instante em que pensei que seria ótimo ter uma companhia nessas águas desconhecidas, um cara magrão, com as costelas aparecendo, barba de um palmo, queimado do sol, parecido com um fugitivo egresso de Woodstock, pulou de um dos pequenos veleiros com uma prancha tosca, velha prá caramba, e saiu remando na mesma direção.

Não falamos nada. Chegamos quase juntos no line-up, tentando localizar onde seria a zona de impacto. Difícil saber, sem qualquer ponto de referência. Quando veio a série vimos que o bicho ia pegar. Tava uns 2,5 metros servidaços. O cara remou para a primeira e já entrou despencando lá de cima com a sua bicheira.

Vi ele ser sugado pela onda que ainda teve a manha de puxá-lo novamente, elevando-o para o lip, seu corpo tornando-se apenas uma sombra na parede azul, subindo, subindo, e sendo bruscamente arremessado de volta na bancada. Eu não sabia a profundidade ou se ele iria sobreviver.

Achei o cara meio leigo e já me vi na iminência de ter que arrastar o seu corpo sangrando e desmembrado durante algumas horas para a praia sob as estrelas taitianas. Para meu alívio sua cabeça emergiu intacta, a barba pingando, e ele logo saiu nadando para pegar a prancha que estava a uma boa distância, onde acabava a espuma das ondas e começava o canal.

Remei para um rabo ajeitado, já sabendo que a minha 6’2” era um chaveirinho bem pequeno para essa enorme fechadura de água. Mas deu certo. Caí meio no ar e fiz o drop. Depois foi só ir manobrando e ajustando a velocidade até o término da onda. Quando a prancha parou, e ainda de pé, pude sentir o cheiro de coral ao mesmo tempo em que virava a cabeça para ver o barbudo sentado lá fora no outside.

Ficamos assim, os dois, umas duas horas, entre um susto e um suspiro, um êxtase e uma lembrança, um caldo e um banho. Quando o sol resolveu dar por encerrado o expediente, saímos juntos para a praia – e ele para o seu barco. Assim, sem uma palavra. Não precisava. “O Tahiti tem onda”, pensei.

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Templo de Angkor, Cambodia, é considerado o maior monumento religioso do mundo. Foto: Sidão Tenucci.

Cambodia – 2011

O que eu posso dizer? Um país devastado pelo ditador Pol Pot e seus asseclas na década de 1970, onde 1,7 milhões de pessoas, um terço da população da época, foi massacrada. O maior genocídio proporcional da história da desumanidade.

Uma limpeza doutrinária. Tudo isso em nome de uma “revolução cultural” nos moldes do comunismo de Mao Tsé-Tung, onde quem soubesse escrever o nome – e, portanto, em tese, pensar – era considerado inimigo das classes trabalhadoras, um intelectual, e, portanto, condenado.

Não é preciso dizer que o país parou de funcionar durante décadas sem a participação dos “intelectuais” de diversos níveis. Perguntei a um cambodiano o que ele entendia como fundamental na vida: “Paz. Sem ela nada mais existe”. A raiz da guerra consiste em querer “possuir” o externo.

Não é surpreendente que uma realidade tão visceralmente violenta contrabalance com uma espiritualidade proporcional. As divindades, a veneração, a presença do espiritual estão em toda a parte e em todos os momentos. Os deuses do panteão hinduísta dão guia.

O deus Khrisna, por exemplo, diz a Adjurna (o guerreiro): “O ser evoluído é aquele que está contente com tudo o que recebe, livre da inveja, que permanece o mesmo no sucesso e no fracasso, e mesmo quanto age, não se prende à ação”.

Independer das situações. Apenas estar no mundo. A via amorosa vai direto ao objeto. “Aquele que não odeia ninguém, compassivo, equilibrado, na dor e no prazer, estável na meditação, firme na convicção, e que se devota a mim (Consciência), é querido por mim”. Procurando a Consciência o contato se estabelece.

Para mim, viagem é relação. Entrar em contato com o povo local. Isso é mais importante que qualquer monumento, pintura, pedra ou edifício.

O complexo de templos de Angkor (cidade), com mais de mil ruínas e templos, Patrimônio Mundial da Unesco, no entanto, mostra a resplandecência de um era de ouro para aquela civilização e ilustra com veemência a fôrça do Homem no seu impulso de realização.

A principal edificação, o Angkor Wat (templo), é considerado o maior monumento religioso do mundo. Iniciado no séc XII, e depois retomada e finalizada a sua construção no séc XVI, já está sendo tomado de volta pela floresta. A natureza e o homem voltam a comungar em Angkor, num abraço quase eterno. Em paz?

Sidão Tenucci é escritor e diretor de marketing da OP (Ocean Pacific). Publicou o livro Almaquatica (Fnac), em parceria com o fotógrafo Klaus Mitteldorf e o designer gráfico David Carson, e o livro de aventuras zen “O Surfista Peregrino” (Livraria Cultura). Lançará em outubro o seu terceiro trabalho, “Poentes de Amor”, ilustrado por 55 artistas plásticos. Viajou por 52 países e outras tantas humanidades.