No fim dos anos 90 e início da década seguinte, o Circuito Mundial de Longboard era uma realidade e pegava fogo. Só nos meses de julho e agosto aconteciam três etapas com passagens anuais por Portugal, Espanha e França. O longboard era um prato perfeito para compor as festas do verão europeu. Rolava de tudo, mas geralmente as condições das ondas eram fracas, pois a época não favorecia o potencial dos grandes swells que o Velho Continente pode oferecer. Mas compensava com festas, gatas, rock e boa premiação.
O surfe progressivo de rabeta encurralava a linha tradicional californiana em disputas pra lá de interessantes. Joel Tudor, Kevin Connelly, Jimmy Gamboa, Cody Simpkins e companhia tentavam manter o clássico em alta. Picuruta e o havaiano Bonga Perkins eram os símbolos da ameaça vertical, mas passaram a ter companhia nos pódios do bizarro sul-africano Jason Ribbink, Collin McPhillips, Duane de Soto, Seb Wilson (irmão mais velho do top do CT Julian Wilson), Amaro Matos, Marcelo Freitas, Matthew Moir, Phil Rajzman, além dos híbridos Beau Young e Jay Byrnes, que passeavam pelas duas abordagens com maestria ímpar.
Augusto Saldanha, que acompanhava o circuito na íntegra, competindo e filmando, registrou a etapa portuguesa de 2001, mas só recentemente subiu o vídeo da final no seu canal Longboard Files, disponível no You Tube. O fatídico dia em que Joel Tudor foi tirado para o baile.
Lembro bem desse campeonato. Chegamos na Costa da Caparica com condições precárias, mas ainda surfáveis. Quando a competição entrou no evento principal, o mar colou de vez. A esmagadora maioria era adepta do surfe de rabeta, ou seja, quase ninguém tinha um equipamento que fizesse a diferença em ondas tão pequenas. Com a janela de espera para fechar e uma previsão desanimadora, os surfistas faziam pressão para que o campeonato terminasse com os pontos e premiação divididos entre os classificados.
A organização buscava com urgência o representante dos atletas para reunir os competidores e decidir a questão. Bonga ocupava o cargo, mas não aparecia na praia, o que ajudava a aumentar a ansiedade da galera. Enquanto isso, Joel Tudor fazia uma pressão violenta para que as baterias fossem para a água. Ele vinha como o grande destaque com sua 9’8 single fin, navegando com facilidade em qualquer calombo que pudesse se parecer com uma onda. O único que vinha com notas próximas a dele era Kevin, mas ainda assim, Tudor estava sobrando.
Até que Bonga apareceu mal humorado, com a cara toda amassada de sono. Os nervos já estavam à flor da pele. Todos votaram pela divisão dos pontos e da grana, à exceção de Joel Tudor, que ainda tentou, em vão, convencer Kevin Connelly a fazer coro com ele. O “Magic Feet” foi generoso, dizendo que a voz do povo era a voz de Deus, e ficou com a maioria, apesar da vantagem de ser um especialista nas marolas com suas pranchas clássicas shapeadas por ele mesmo.
Tudor ficou puto, deu piti, ameaçou a organização e de tanto bater o pé conseguiu que as baterias fossem para a água. Teve gente xingando Joel de tudo quanto é nome. Ele parecia muito intimidado e sem graça, sabendo que sua atitude geraria consequências pesadas perante seus colegas de circuito, mas, mesmo assim, manteve sua posição.
Nas quartas de final, Picuruta saiu eliminado da sua bateria contra Zack Howard. Na beira da água, deu de cara com Joel Tudor, que estava escalado na bateria seguinte. O Gato largou a prancha, ajoelhou-se, curvando o tronco e balançando os braços como se estivesse fazendo reverência a Tudor. Ironia pura, como quem dizia ‘Parabéns, você é Deus, você é o cara, conseguiu o que queria’. Eu e Olimpinho estávamos nos molhes, bem próximos de tudo, e não podíamos acreditar na cena. A praia lotada foi ao delírio, rindo e aplaudindo. Joel parecia incrédulo. Mesmo assim, avançou até a final.
Acho que o que ele menos queria acabou acontecendo. Connelly também avançou. E quando Joel se dirigiu ao beach marshall para retirar sua lycra, seu semblante estava bem desgastado. Olimpinho ainda cantou que ele já estava entrando derrotado na decisão. Kevin “Magic Feet” Connelly justificava o apelido onda após onda e tirou Joel Tudor para o baile. Recordo que as duas melhores notas de Kevin foram acima dos 9 pontos. O público fazia alvoroço a seu favor, minando de vez o estado psicológico do Tudor.
Connelly venceu brincando, mesmo em condições tão fracas. Apesar de ter sido barrado no baile do Magic Feet, Joel Tudor se consolidava como mito, inclusive, perante todos que estiveram envolvidos naquela situação. Em 2004, conquistou seu segundo título mundial, último ano em que o WLT ainda podia ser chamado de Circuito. Bons tempos aqueles!
Foto de capa: Ron Green