Lembranças tahitianas

Teahupoo, Tahiti

Em Teahupoo, o sonho vira pesadelo em um piscar de olhos. Foto: Bruno Lemos.

Recebi inúmeras mensagens positivas sobre matéria que fiz a respeito de uma trip para o Peru, em que descrevi as loucuras da minha primeira barca ao pico.

 

Josil Mandacaru, meu parceiro ao lado do legend Zecão em minha estréia no Tahiti em 2000, deu a idéia e resolvi compartilhar com vocês todas as doideiras dessa viagem também.


“E aí, Julião (brasileiro residente em Oahu). Eu preciso de visto para ir ao Tahiti?”, perguntei.

 

“Pôxa, eu fui sem visto e entrei numa boa. Os meus amigos que me acompanharam na barca no ano passado também não precisaram”, afirmou ele, que passou por lá um ano antes.

 

Era final de março em Oahu e eu estava na pilha de experimentar o caroço de Teahupoo. Não pensei duas vezes e decidi ir sem visto mesmo. Para a minha mente inexperiente, três dias de espera por um visto eram uma eternidade.


Everaldo “Pato” Teixeira, o fotógrafo Agobar Júnior, Rodrigo e Rafael Azevedo partiram  do Hawaii uma semana antes da nossa barca. Zecão e Josil estavam “bucados” na casa do local Moana David, irmão de Vetea David, e profundo conhecedor de todas bancadas.

 

No pacote, em sua pousada está incluso o barco (sem barco é roubada, pois as bancadas são longe da costa), duas refeições e acomodação em quarto para duas pessoas.


Eu, com o “budget” reduzido, tive que me contentar em comprar uma barraca de US$ 100 no Wall Mart e fazer uma reserva no camping, onde os havaianos montam acampamento.

 

Cerca de quatro horas de vôo e lá estava eu tentando explicar para o cara da imigração o porquê de eu ter embarcado sem visto. Europeus não precisavam de visto, mas para os brasileiros era obrigatório.

 

Acabei pagando o preço por toda a galera que apareceu sem visto na frente do oficial. “Você vai de volta ao Hawaii e só apareça aqui com visto. Cansei de ver passageiro sem visto por aqui”, afirmou o responsável pelo aeroporto.

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Moana (à esq.) e Vetea David na sala de jantar da pousada em Papetee, capital do Tahiti. Foto: Luli.

Uma funcionária, depois de observar todo o rolo confidenciou que o “manda-chuva” não se encontrava no local e ele sempre liberava a galera sem visto e também que o cara que me mandou de volta era assistente e queria mostrar serviço.


No vôo de volta, um dos comissários me perguntou o que tinha acontecido. Eu o reconheci, era um ‘puta’ local de Pipeline que pega de longboard. Depois de ouvir a história, ele deu um banho revitalizante na minha alma.

 

“Fica tranqüilo. Tira seu visto e me liga que eu te arrumo outra passagem por US$ 150”.

 

Naquela época, os tickets custavam cerca de US$ 700. Após cinco dias lá estava eu de volta ao aeroporto. Na saída, cruzo com Pato e Agobar indo de volta ao Brasil. Pato, com várias “patadas” de coral nas pernas dá um toque: “Passe limão nos cortes, pois os corais são venenosos e os cortes acabam inflamados”.


O irmão da dona da “Pension Bonjouir” foi me buscar no aeroporto. Dormi na casa dele e comecei a sentir aquele clima polinésio. Um pouco mais quente que o Hawaii e bem mais rústico. Na real, tinha uma impressão totalmente diferente.

 

Todos sempre falavam do alto preço de uma trip para o local, e esperava ver altos carrões na rua e hotéis luxuosos. Porém, a realidade é outra. Cerca de 80% dos carros são velhos e me lembraram muito a América do Sul (Chile e Peru) nesse quesito.

 

Agora, a cor da água é reluzente já no caminho da cidade. A “End of the Road”, nome dado ao vilarejo em frente a Teahupoo, deixa qualquer um embasbacado.


A Pension Bonjouir está localizada a cerca de 10 minutos de lancha da vila em direcão à floresta. Ao chegar no local, todo os havaianos, entre eles Liam Macnamara, Mark Healey e Tay Van Dike, se aglomeravam em suas barracas no meio do mato. Tratei logo de arrumar a minha também. Afinal, US$ 10 por dia para acampar e usar banheiro e cozinha é a melhor opção para quem está com pouca grana.


A primeira semana foi de ondas com cerca de seis pés e muita chuva. Todos me deram o toque da barraca, mas só esqueceram de me lembrar de comprar um forro para chuva. Resultado: Uma grande goteira todas às noites.


A comida é bem cara e eu havia levado uma mala com alimentos para um mês, porém fui obrigado ir até à cidade comprar uma ou outra coisinha. Aproveitei, então para comprar umas garrafas de vinho tinto que estavam em promoção.


Consecutivas noites de chuva seguintes foram bem agitadas no mato da Pension Bonjouir. Sem ligar mais para tudo molhado dentro da barraca, eu improvisava minhas próprias festas.

 

Com meu som, à base de pilhas no volume máximo, duas lanternas girando simultaneamente a 100km/h e alguns goles de vinho, eu fazia minha festa –  acompanhada na escuridão pela galera das outras barracas.

 

Uma rapaziada de Maui sempre gritava de dentro de suas barracas (também cheias de água) e cada um curtia ao seu modo o som que vinha dela.


Em um final de tarde, peguei uma canoa e arpão e fui pescar em uma bancada localizada na frente da pensão. Quando ancorava a canoa na bancada, vi um tubarão vindo a toda velocidade na minha direção. Não sei como consegui subir tão rápido na canoa e colocar os pés para o céu (risos), enquanto o shark se deslocava por baixo da embarcacão.


“The day”. No dia seguinte, as ondas aumentaram. Um swell de 10 pés entrou perfeito e pesado na esquerda mais temida do momento. Foi o primeiro dia que cruzei o local Vetea David na água.

 

Ele havia ficado na casa do meu brother Taiu no Guarujá no ano anterior, e havíamos feito amizade. Ele mostrou que é bem diferente dos havaianos recebidos no Brasil, com recepcão ímpar, e depois que te cruzam no Hawaii nem olham na cara. Vetea chegou ao pico e veio direto me dar boas vindas.


O mar estava clássico e muito crowd. Tamayo Perry, Liam e Strider me fizeram pensar que estava em Pipeline e não em “Tchopo”. Altas ondas!


Mas, depois de três horas eles saíram da água e quando eu me toquei que todos os barcos haviam ido embora e eu fiquei sozinho no pico. Peguei umas cinco ondas sozinhos, até o barco do pai do local Mannoa Drollet aparecer e com gestos me oferecer uma carona de volta. Ele iria à vila e, como eu tinha alguns dólares no bolso, falei que pegaria a última e iria com ele.


Remei com toda forca para uma bomba de oito pés, no meio do drop eu vi um tubarão passar por baixo da base da onda. Completei o tubo na maior adrenalina e fui a mil para o barco. Depois de comer duas baguetes, voltei remando para o final de tarde. Vinte minutos de remada separam a areia da vila e o outside de Teahupoo.


As ondas estavam mais clássicas que a session da manhã. Vetea já pegava altas bombas de backside, enquanto Liam Mcnamara quebrava sua prancha ao meio ao morrer dentro do tubo. Nessa hora, Danilo Couto, Paulo Moura e Wilson Nora pegavam uma atrás da outra.

 

Eu sabia que Danilo pegava altos tubos em Pipe, mas até então não tinha visto o Moura surfar ondas desse calibre e ele me impressionou. Dropava atrás do pico as bombas de 8 a 10 pés e passeava sem dó por dentro dos translúcidos salões. Fiquei amarradão em ver o talento e determinação do pernambucano.


A maior série do dia entrou e Vetea gritou: “Go, go!”.

 

Eu estava no pico de um caroço animal de 10 pés. Quando eu começo a desgarrar pela parede com a mão na borda, Tamayo Perry rema para a onda mais no rabo e tira toda a minha concentração. Dei um wipe out animal com direito a visita ao reef e gritos enlouquecidos dos havaianos no barco da pensão.

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Vetea David transmite o real  espírito polinésio. Foto: Site Billabongpro.com.

 

Aquele ditado, “Se você não fizer uma grande manobra, dê um lindo wipe-out”, foi oficializado. Voltei com o peito aberto para o outside e os tubos não paravam de rolar.

 

Na volta ao outside, vi cada um que nunca mais sairão da minha memória, além de vê-los imortalizados nas revistas especializadas nos meses seguintes.


A esta altura, o sol se punha na água e tornava esse dia inesquecível. Mais ainda depois de surfar uma bomba com direito a dois tubos e uma baforada.

 

O local Kaleo Roberson me deu um aperto de mão logo que cheguei ao barco e sorriu dizendo: “What a double barrell”. Durante à noite, um cinegrafista passou as imagens na TV da sala e fui dormir amarradão. Quando acordei, fiquei sabendo que minha namorada Deborah Farah havia ligado para mim na noite anterior e não me chamaram por causa da chuva.

 

O filho do dono da pousada disse para ela que eu estava em uma festa na minha barraca. Deborah ficou com a pulga atrás da orelha e não entendeu nada, mas eu expliquei para ela no dia seguinte…

 

O fotógrafo Brian Bielmam cruzou Tony Fleury na rua e disse ter a melhor foto de um wipe out no local de um brasileiro e perguntou se me conhecia. Na semana seguinte, as ondas baixaram e manteram-se em seis pés quadrados.

 

Matt Archbold, que já havia me rabeado em uma onda épica em Off the Wall e saído em uma página dupla na Surfing, com direito a aparição minha no quadro – engolido na espuma sendo visivelmente ignorado pelo californiano – me rabeou de novo em uma linda onda. O bunda mole do Shane Beschen ainda soltou: “Fucking brazilians”.

 

Tony Fleury viu toda a cena do barco e fez um sinal para que eu espancasse o californiano ali, na frente de todo mundo. Respirei fundo e não falei nada. Se fosse o Marcelo Biju, teria afogado o desgraçado ali mesmo.


Josil e Zecão pegavam altas nesse dia e contavam as histórias dos secrets que Moana David havia mostrado a eles na ilha vizinha. Na mesma noite, meu avião estaria zarpando. Josil, representante da Bennett Foam, fez companhia para mim no vôo de volta a Oahu.


O mundo sempre dá voltas e em uma ida ao banheiro do aeroporto cruzo Matt Archbold no banheiro. Expliquei para ele que paciência tem limite e se ele piscasse para uma onda minha de novo eu iria afogá-lo. Sem os amigos ao lado, ele saiu do banheiro de cabeça baixa e nunca mais remou em onda minha.


Uma febre de 42º, causada por dengue contraída no meio do mato, no Tahiti, acrescentou mais um contraste a esta trip que comecou com uma entrada vetada. Depois, fiquei sabendo que a maior galera também pegou dengue. Epidemia forte.


Minha mãe e a minha namorada não acreditaram no estado que desembarquei em SP. End of the road…


Aloha

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