A viagem para a Califórnia com a família, em plenas férias de verão local, não é exatamente uma surftrip, mas rende muita diversão dentro d’água. Fui para o Sul do Estado, no trecho entre San Diego e Los Angeles, onde, contam os guias de surf, há o maior número de surfistas por metro quadrado do planeta.
Nos picos, tem gente de todos os tipos: amador, grommet, profissional, longboard, SUP, avô, neta, soul surfer, bodyboarder, kneeboarder e o que mais for possível imaginar sobre uma prancha que deslize na água.
Escolhi três picos concorridos para confirmar a tese de que, embora eles tenham muito mais surfistas na água, o surf no crowd é estranhamente possível.
O primeiro é Blacks, onda de San Diego conhecida pela potência e por algum localismo, encravada no sofisticado bairro de La Jolla. Acordei cedo e, às 7 horas, já estava com mulher e crianças na íngreme trilha de acesso à praia.
Era assustador o número de surfistas que já estava no caminho, mas o maior estranhamento mesmo foi a educação. Cruzamos com pelo menos duas dúzias de surfistas na caminhada. Nenhum deles pediu que eu fosse surfar em outro lugar, como acontece em alguns picos. Nenhum deles fez cara feia.
De quase todos, ao contrário, ouvi um bom dia, acompanhado de um sorriso.
O mar estava liso e a água quente. O swell era miúdo, mas forte o suficiente para divertir o mais exigente surfista. Cheguei no pico e tentei contar o número de surfistas. Havia mais de 100, é certo.
Desanimei, mas a fissura me fez entrar na água de todo modo. Lá dentro, o milagre. Consegui surfar! Uma, duas, dez ondas. Sem ser importunado, sem ser desrespeitado ostensivamente, sem ser questionado.
O segundo é Windansea, localizado na mesma área, em La Jolla. Trata-se de um fundo de pedra de um pico só, para os dois lados. A concentração de surfistas, portanto, é maior que em praias com ondas espalhadas. Por ser uma onda mais gorda, atrai um perfil de surfista muitas vezes mais velho e menos agressivo.
Cheguei também às 7 horas e me deparei, sentado nas pedras em frente às ondas, com uma infinidade de surfistas aglomerados. Vai ser mais difícil, pensei. Que nada. Brindado por um swell mais consistente, tinha onda para todo mundo. Bastava entrar na onda, sem gritar, sem nada, para, inesperadamente, ser respeitado.
Aliás, tive essa reflexão ainda dentro d’água: como o respeito tornou-se um presente inesperado em ondas disputadas?
Voltando ao surf peguei duas dezenas de ondas de qualidade, antes de sair, desviando das algas, que algumas vezes chegavam a travar a prancha.
O terceiro é em outra cidade, São Clemente. A aclamada Trestles não poderia ficar de fora das expedições da família, sempre com prancha, baldinho de criança e um rango para enganar a fome do almoço.
Na primeira caída, cheguei tarde. O crowd, ali em Lowers, é ainda mais agudo. No primeiro dia, inocente, cheguei por volta das 9 horas, com a expedição-família. Foi difícil surfar, nem tanto pelo desrespeito, e mais pela disputa forte pela onda por muitos surfistas. Ainda tem uma molecada pilhada que fica mais embaixo esperando as sobras. Ou seja, não tem onda sem surfista.
No dia seguinte, acordei de noite. Atravessei a trilha tateando o escuro e, nos primeiros raios de luz, já estava no trilho do trem. Parti igual a uma locomotiva para Lowers. Quando consegui ver alguma coisa, já tinham para lá de 20 cabeças.
Surpreso com o crowd, troquei uma ideia rápida com, outro surfista, o local Matthew, que botava a roupa de borracha ao meu lado. E ele:
– Você não está entendendo. Tenho muitos amigos que dormem aqui na praia, tenho outros que surfam em todas as luas cheias. Aqui, tem gente na água 24×7.
Antes que me corrijam, reparo: sim, certamente, dentro d’água, em todos os picos, havia locais com vibração ruim, que arrumariam confusão com estrangeiros. Mas o surfe só faz sentido com prazer: encontrei meu caminho, em boas ondas, longe deles.
A diferença, a fundamental diferença, está no espírito amistoso da maioria, na ideia de que é possível conviver – e surfar – numa região em que há um grande número de surfistas.
Em algum momento, imaginei a Califórnia como o Rio de Janeiro do futuro, dentro de uma perspectiva otimista de desenvolvimento e de uma nova relação entre os surfistas. Afinal, haverá mais surfistas para as mesmas ondas cariocas.
A dúvida é se seremos mais educados e bem formados para possibilitar a convivência ou se entraremos na água armados para garantir a melhor da série no meio da sessão.