Leitura de Onda

Lições de seu Jaime

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“Gabriel reencontrou a vitória nos aéreos. E, coisas da vida, logo depois de ter massacrado o australiano Bede Durbidge na final da etapa francesa, em Hossegor, revelou ter optado por essa estratégia ao se lembrar dos pedidos do avô”. Foto: WSL / Poullenot

 

“Eu sou a favor de surfe de tubo, rasgada e aéreos, mas principalmente aéreos. Gosto quando o cara dá aéreos. Impressiona mais, porque é algo que você não vê normalmente no surfista. (…) Eu falo para ele, eu tenho essa liberdade de falar com o Gabriel, e ele escuta. Não fala se vai fazer ou não, mas escuta.”

As palavras de seu Jaime Pinto, avô de Gabriel Medina, estão gravadas na longa entrevista que fiz com a grande figura para o livro “Gabriel Medina” (Primeira Pessoa), pouco tempo antes de sua morte inesperada.

Dois meses antes do papo, Gabriel tinha conquistado o título mundial longe dos aéreos. Driblou as oscilações de critério para manobras progressivas, ajustou o backside, aprimorou o carving, fez valer seu talento em tubos e levou o caneco.  

Pensei, ali, que o manifesto pelos aéreos era não mais que um devaneio de avô apaixonado. Mas não, o tempo tratou de revelar a sabedoria do eterno seu Jaime.

Gabriel reencontrou a vitória nos aéreos. E, coisas da vida, logo depois de ter massacrado o australiano Bede Durbidge na final da etapa francesa, em Hossegor, revelou ter optado por essa estratégia ao se lembrar dos pedidos do avô.

Ganhou por ele e, também, por causa dele.

A nota dez na fase 4, prêmio óbvio para um dos mais bem executados aéreos da história do circuito mundial, transformou o ambiente, gerou frisson no público, elevou o espírito dos juízes. Foi um daqueles movimentos mágicos, que produzem o encantamento necessário ao título da etapa.

Para além da opinião de seu Jaime sobre os aéreos, Gabriel foi, de longe, o melhor surfista da prova. Foi campeão mundial longe de seu auge técnico, e isso parece ficar cada vez mais claro à medida que o tempo passa.

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Na França, Medina mostrou ao mundo um surfe de backside veloz, limpo, sem arestas. Seus movimentos de botton-turn e ataque ao lip estavam precisos, com ângulos corretos. Foto: WSL / Poullenot

Na França, mostrou ao mundo um surfe de backside veloz, limpo, sem arestas. Seus movimentos de botton-turn e ataque ao lip estavam precisos, com ângulos corretos. Lembravam os de Owen Wright, só que mais rápidos e fluidos. As pranchas do Johnny Cabianca estavam mais vivas que nunca na terra de Sartre.

A segunda nota dez, na semifinal, serviu para carimbar na mente dos juízes a máxima de que Gabriel é, hoje, um surfista completo: tubo profundo em beach break, rasgadas e batidas sem perder a linha da onda e aplausos emocionados do educadíssimo público francês que lotava a areia gelada de Hossegor.

Gabriel sai da França com outras pequenas e importantes conquistas: venceu pela primeira vez em baterias homem a homem seu amigo e velho rival Adriano de Souza, acabando com uma escrita que o incomodava; eliminou pela segunda vez na temporada John John Florence, impondo-se mais e mais sobre aquele que muitos chamam de surfista mais completo do mundo; e marcou seu território ao botar em combinação os companheiros de equipe Owen e Matt Wilkinson, na fase 4, quando se deu ao luxo de descartar um 9,40 e um 8,00, notas que seriam suficientes para lhe dar a vitória.

Aqui, um parêntese:  todo grande atleta tem torcida contrária, sobretudo quando rompe a hegemonia histórica de um par de países acostumados aos louros. Não é diferente com Gabriel. Os tais “haters”, na falta do que falar, avançaram sobre a comemoração efusiva do surfista logo depois do aéreo nota dez.

Pois não há nada mais arrogante que não comemorar efusivamente depois de um movimento tão extraordinário. Os falsos humildes que me perdoem, mas a comemoração das manobras do Gabriel é fundamental.

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Adriano de Souza foi, mais uma vez, sólido. A prancha parece ter voltado ao pé definitivamente, e o peso da camisa amarela não mais lhe atormenta. Foto: WSL / Poullenot

Agora, Adriano. Ele foi, mais uma vez, sólido. A primeira onda da fase 1 simbolizou sua performance ao longo da competição: uma direita power, em que executou duas manobras potentes, sem aliviar um milímetro, e foi premiado com um 8,67.

Eu daria mais.

A prancha parece ter voltado ao pé definitivamente, e o peso da camisa amarela não mais lhe atormenta. Como disse um leitor amigo, Mineiro é mestre na arte de virar o jogo, em vir de baixo. Fez uma importante semifinal e, diante do quinto lugar do líder Mick Fanning, funga no cangote do australiano, a apenas 450 pontos de distância.

Mick vai a Portugal pressionado não só por Adriano, mas também por Owen, Julian e  agora pela sombra do campeão de 2014. Convém aos grandes candidatos ao título não deixar para resolver em Pipeline. Lá, tudo pode acontecer.

São dignas de nota, ainda, na França, a consistência de Ítalo Ferreira, que surfou muito bem em alguns rounds e fez o terceiro quinto lugar do ano, e a fibra competitiva do inquebrável Jadson André, que ficou em nono mesmo sem ter feito grande apresentação, sobretudo nas fases iniciais.

Sigo sem entender, assim como alguns leitores, por que insistem em chamar Dane Reynolds como convidado dos eventos. É a quinta participação do americano em 2015. O cara é um grande surfista, mas não tem qualquer vocação para as tensões da competição. É um eterno cool, e ganha muito bem a vida assim. Na fase 3, contra Owen, perdeu com uma soma de apenas 10,97 num mar afeito ao seu surfe – direitas alinhadas de um metro, prontas para explosões e voos.

Tem uma pá de excelentes jovens surfistas à espera de uma, apenas uma, oportunidade de se mostrar ao mundo numa etapa da WSL.

Antes de acabar, recorro mais uma vez às lições de seu Jaime, o querido avô de Gabriel. Na entrevista que me concedeu, ele parecia querer dar um recado ao neto e ao resto da família, embora sua saúde estivesse boa naquele momento.

“Tenho uma ideia de mais ou menos quando eu vou morrer. Inclusive eu falo para eles: ‘não tem que chorar nada não, toca a vida de vocês’. Se o moleque estiver fazendo um campeonato lá fora não vai fazer ele sair para vir ao meu velório!”

Gabriel estava fora do Brasil quando seu Jaime partiu. Depois desta vitória agora na França, o avô deve estar lá em cima, com um sorriso no rosto, feliz e emocionado com o neto.
 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".