“Há algumas semanas atrás, passei um perrengue no posto 12 da Praia da Macumba, no Rio de Janeiro. Durante o swell da lua cheia, na véspera da semifinal da Copa Do Mundo, tomei umas boas series de 5 a 7 pés na cabeça e após minha cordinha não aguentar. Acabei ficando sem prancha no outside, uma situação bem difícil. Confesso que o que me salvou foi uma matéria sobre apneia publicada em uma FLUIR que eu tinha lido naquela manhã. A calma e controle de respiração foram fundamentais para conseguir sair no braço até a areia. Foi difícil manter a frieza, gastar pouca energia e controlar a respiração com ondas de 5 a 7 pés quebrando na minha cabeça e sem prancha, mas essa matéria, somada aos comentários de Carlos Burle sobre o resgate da Maya Gabeira e algumas outras informações que eu já tinha salvaram minha vida”, relatou Alysson Laurentino em um dos posts publicados em nossa página no Facebook.
Assim como Alysson, a maioria dos surfistas já passou algum perrengue dentro do mar. Pensando nisso, estamos republicando a matéria sobre apneia, publicada na seção Miscelânia da edição de janeiro de 2014.
MAIS FÔLEGO PARA SURFAR
Depois de duas aulas em uma academia de São Paulo, a reportagem da FLUIR conseguiu passar 2 minutos e 14 segundos embaixo da água para mostrar como um bom treino respiratório pode melhorar seu rendimento no outside.
por Bruno Abbud
No dicionário, apneia significa “interrupção momentânea da respiração”. É exatamente pelo que passam surfistas de qualquer espécie logo que vacam na primeira onda do dia – não importa se você é experiente, novato, ou surfista de fim de semana. Ficar sem oxigênio no sangue é biologicamente desagradável para todos. Quase todos. Existem seres humanos que sabem lidar – e muito bem – com esse tipo de perrengue. Christian Dequeker Martin, 44 anos, é um deles. Duas vezes recordista brasileiro em freediving e ex-professor do Centro de Estudos em Fisiologia do Exercício da Universidade Federal de São Paulo, Christian é um especialista. Ele começou a trabalhar aos 19 anos como salva-vidas no antigo The Waves, um conjunto de piscinas que existia em São Paulo nos anos 90, e hoje ministra cursos de apneia por todo o Brasil. No dia 19 de novembro, uma terça-feira pré-feriado, apareci pela primeira vez na academia Top Swim, no bairro da Aclimação, em São Paulo, para integrar a lista de alunos do curso de apneia conduzido por Christian. Anotei tudo e, agora, você vai saber como um bom treinamento pode salvar sua vida no outside.
Aula 1 – Terça-feira, 19 de novembro de 2013
Sob a tutela de Christian Dequeker estão nove aprendizes nesta terça-feira chuvosa. Diante de uma piscina de 25 metros de comprimento, o professor mostra em uma lousa branca como será o treinamento do dia. Uma das sequências inclui remar por 50 metros sobre uma prancha, dropar uma onda imaginária no chão e, logo em seguida, dar braçadas subaquáticas até onde os pulmões aguentarem. Quando seu corpo chegar ao limite e você realmente achar que está prestes a desmaiar, tire a cabeça para fora da água, respire e termine a piscina nadando crawl, sempre soltando o ar pela boca quando o rosto estiver virado para o fundo. Depois de repetir a sequência três vezes, passei para o segundo exercício do dia.
Agora, o treino é em uma piscina menor, de menos de 10 metros de extensão. Eu deveria mergulhar, chegar ao meio do caminho, girar em duas cambalhotas sucessivas e, simultaneamente, soltar o ar dos pulmões, e, por fim, terminar o resto do trajeto nadando por baixo da água. Depois, respirar profundamente uma só vez e atravessar, submerso, o caminho de volta. O exercício – que na lousa parecia muito fácil, mas, na prática, fazia-me sentir como um soldado do exército norte-coreano – deveria ser repetido quatro vezes. Depois do sofrimento, comecei a aprender uma das principais lições dos especialistas em apneia: como identificar os sinais de alerta do corpo, que avisa quando estamos sob perigo. “Identificar esses sinais e negociar com o corpo é uma maneira de aguentar mais tempo embaixo da água”, diz Christian.
Formigamento no diafragma ou em qualquer outro músculo, contrações involuntárias e engolimentos em seco são indícios de que o organismo está no limite. Numa situação real de risco, a melhor forma de sobreviver após identificar esses sinais é tentar manter os batimentos cardíacos lentos. O sossego mental é a chave para o sucesso da apneia. É como meditar sob a água. Quanto menos energia seu corpo gastar com movimentos e pensamentos desnecessários, maior sua chance de não “sambar”. No vocabulário dos praticantes de apneia, um aluno “samba” quando emerge com tontura, visão turva, pressão desregulada, quase desmaiando. Quando isso acontece, Christian pula na água e socorre a vítima imediatamente. “Muitos sambam por aqui”, diz o professor. “É normal”.
O curso ministrado por Christian engloba cerca de 3 mil variações de exercícios. Em cada aula, há um treinamento diferente. O objetivo é fazer com que o corpo se adapte à presença do gás carbônico na corrente sanguínea.
(Continua na página 02)##
Aula 2 – Quinta-feira, 10 de dezembro de 2013
Em parceria com Romeu Bruno, especialista em apneia e renomado big rider paulista, Christian Dequeker promoveu o primeiro curso de apneia para surfistas e big riders em 2003. De lá para cá, o professor teve a oportunidade de usar ele próprio os ensinamentos que leciona. “Ainda não peguei Jaws, mas Nazaré que me aguarde”, diz. O mar mais casca-grossa que enfrentou até agora foi em Pico Alto, no Peru, e em Maresias, diz ele. Converso com Christian enquanto coloco máscara de mergulho e pés de pato antes de afundar na piscina para a aula desta quinta-feira, 10 de dezembro. Ao meu lado está Alexandre Liki, um ilustrador de 32 anos que frequenta as aulas de Christian há um ano e quatro meses. “Em cinco meses de treino, saí da minha pior forma física para a minha melhor forma física”, diz. Alex, como é chamado, permaneceu inacreditáveis 5 minutos e 23 segundos submerso, durante uma apneia estática – quando o corpo flutua imóvel, virado para o fundo da piscina. “Aprendi a entender as reações do meu corpo. Isso gera uma segurança enorme, você começa a perceber que pode aguentar as piores situações no mar”, diz ele, que certa vez em El Salvador tomou uma série inteira na cabeça e, após longos segundos embaixo d’água, emergiu sorrindo, feliz por superar com facilidade o perrengue. Seu recorde de apneia dinâmica – quando se atravessa a piscina sob a água, movimentando as nadadeiras – foi de 100 metros.
O aluno Hélio Lee, de 31 anos, tinha tudo para se dar mal em Jeffreys Bay, em agosto último, quando vacou ao dropar uma onda em Supertubes e tomou uma série de 2 metros rápidos na cabeça. “Senti a pressão lá embaixo, agarrei as pedras no fundo e mantive a calma”, diz ele. Lee é aluno de Christian há um ano e meio. Até agora, seu recorde de apneia estática foi de 3 minutos e 49 segundos.
Aos 42 anos, o engenheiro Wilson Feldberg também participava dos treinos daquela quinta-feira. Wilson – cujo recorde em apneia estática é de 3 minutos e 36 segundos e, na apneia dinâmica, 62,5 metros – frequenta as aulas na academia da Aclimação há quase quatro meses. Neste ano, ele embarcará pela segunda vez para a temporada de inverno no Hawaii. “Minha meta é cair em Waimea com 15 pés”, diz Wilson. “Vou tentar ter a coragem para isso”.
Desde que começou a treinar apneia, Wilson diz que sua vida mudou. “Notei uma grande diferença no poder de concentração”, conta ele. “Nem tanto no fôlego, mas na capacidade de relaxar. Isso melhorou até a minha rotina no trabalho.” Wilson tem razão. Naquela quinta-feira, percorri 50 metros na apneia dinâmica e consegui permanecer 2 minutos e 14 segundos submerso na apneia estática. Durante a semana, depois das atividades na academia e de exercícios respiratórios fora da água (veja quadro ao lado), notei minha respiração automaticamente mais eficiente. Agora resta o teste no mar. Sem dúvida, vou encarar as ondas de outra maneira.