Leitura de Onda

Manam

Praia de Dois Rios, Ilha Grande (RJ). Ilha Grande (RJ).

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Praia de Dois Rios, Ilha Grande (RJ). Foto: Carlos Secchin.

 

“Manam” significa sonho em árabe. Um bom nome de barco, pensei, especialmente para o catamarã de 45 pés que me tiraria de uma tempestade pessoal para embalar minha velha carcaça no docemente furioso mar aberto da Ilha Grande. O convite fora do amigo Carlos Secchin, conservacionista e um dos maiores fotógrafos submarinos do Brasil, que viajaria com a família e abriu generosamente uma vaga no barco alugado para resgatar um parceiro.

Os passageiros – ou a tripulação mesmo, já que a ideia era que todos trabalhassem pelo barco – eram de primeiríssima classe.

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“Manam” significa sonho em árabe. Foto: Reprodução.

Secchin é um observador raro das ciências da natureza. Meteu-se por todos os biomas do Brasil – do mar exuberante ao misterioso Cerrado. Autor de uma penca de excelentes livros – entre os quais um dos melhores já editados sobre a Ilha Grande – ele mergulhou tão fundo nas sutilezas do ambiente que descobriu um coral-negro no Sul da Bahia. Os pesquisadores que catalogaram a espécie homenagearam o fotógrafo no nome científico: Cirripathes secchini.

Além dele, estavam no barco seus dois filhos, o artista plástico Gabriel e o produtor de cinema Julio, a designer Alice (namorada de Gabriel) e a skipper do catamarã Nadia Megonn, uma talentosa navegadora que se divide entre Ilhabela e os oceanos do mundo.

O “tempo-ilha”, nome que um amigo dá ao tempo que você consegue conviver com alguém numa viagem (e, no caso, confinado a um pequeno espaço) passou longe de ser esgotado. A energia se manteve positiva, cada um assumiu uma tarefa particular em nome do grupo.

Eu, por exemplo, lavei muitos pratos. Alice virou a número dois da Nadia. E Julio cozinhava as vieiras que comprávamos do Beto, pescador que as cultivava na Ponta dos Castelhanos e mergulhava na hora para tirá-las. Um equilíbrio sutil, regido por bom senso e boa vontade.

A missão era de surfe. Passaríamos sete dias, em meados de dezembro, à cata de ondas.

Rompemos o mar abrigado das costas da ilha pelo Farol dos Castelhanos, para alcançar a riquíssima Lopes Mendes. De lá, saíamos para Dois Rios e voltávamos. No fim, alcançamos ainda as praias do Leste e do Sul, além de Aventureiro. Dormíamos em qualquer canto abrigado do vento e das ondulações, que se alternavam entre Sul e Leste, no conforto estável de um barco com dois cascos, como o catamarã.

Nos poucos momentos de terra firme, nas trilhas, deliciamo-nos com um enorme bando de macacos bugios, com seu berro gutural, assustador, tomamos banho de água doce em Dois Rios e aproveitamos para visitar na mesma praia o recém-inaugurado Museu do Cárcere, que conta a história do hoje inimaginável Presídio Candido Mendes, implodido em 1994.      

Surfei quase todos os dias, muitas horas. Surfamos, aliás. E, quando estava sem prancha, me jogava no mar, apenas para manter a energia da água salgada conectada ao corpo.

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Tulio Brandão em busca das ondas em Dois Rios, na Ilha Grande (RJ). Foto: Carlos Secchin.

 
Fomos presenteados com pelo menos três momentos triplamente mágicos – ondulação certa, vento terral, ninguém na água – em inocentes terças, quartas ou quintas pouco concorridas do mês de dezembro: dois em Lopes Mendes e um na surpreendente Dois Rios, que vira uma máquina de ondas com swell de Leste e vento Nordeste.  

Em momentos de fissura, quando os parceiros já tinham cansado, surfei longos períodos absolutamente sozinho em praias inteiras, plenas, completas, com tudo o que um ser humano pode desejar: água cristalina e quente, rica fauna marinha, areia branca de grãos finos, emoldurada por generosos paredões de Mata Atlântica viva, sem vivalma ao alcance do horizonte. No mar, ondas divertidas escorriam para os dois lados. Sobravam.

Cheguei a sentir solidão, se é que isso é possível num estado superlotado de surfistas como o do Rio. Desejei que outros estivessem ali para compartilhar o momento mágico, mas não. O universo e a natureza quiseram me presentear na medida deles, superlativa. Sem limites.

Aceitei, fiz a comunhão. Bons amigos, conversas sinceras, generosidade, o mar, o sol, a exuberância da floresta e as ondas me trouxeram de volta ao mundo.

No caminho para o Rio, era eu, o Tulio, ali de novo. Pronto para outras ondas.

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