Medo e coragem de mãos dadas

Barca Tulio Brandão, Carlos Burle e Eraldo Gueiros

Em um pequeno barco de alumínio no litoral carioca, Túlio Brandão conheceu um pouco do que sentem os big riders em situações de risco. Foto: Cláudio de Moraes.

As paredes sombrias de Maverick’s, o paradisíaco inferno de Teahupoo e, visto de perto, até as direitas que deformam o horizonte do Leblon são impressionantes.

 

Mas, de todo o fabuloso circo de ondas gigantes, uma outra natureza é capaz de me prender a atenção, talvez até mais que as montanhas d’água.

 

É a natureza do homem, aquela que faz um corpo franzino encarar uma besta de 60 pés em cima de um pedaço de fibra, sem deixar o medo ser maior que a onda, sem deixar o pânico ganhar da razão.

 

Falo da coragem, não a que hoje anda vulgarizada por pitboys covardes. Falo da coragem de assumir o medo sem ter medo disso, de controlar o medo com responsabilidade, da coragem de lidar com a morte sem temer a morte.

 

Carlos Burle e Eraldo Gueiros: “se não tem adrenalina, a gente cria”. Foto: Divulgação.

Não precisei encarar uma bomba em Jaws para conhecer a virtude dos atletas dessa modalidade. Bastou um swell (meio torto) em Grumari, a fissura de Carlos Burle e Eraldo Gueiros para desbravar novos picos e pronto, lá estava eu, com a dupla, num barquinho de alumínio, atrás de uma desconhecida laje na altura de Guaratiba.

 

Conhecidos pelo profissionalismo, os dois assumiram os riscos de enfrentar um mar de dois metros numa embarcação para águas abrigadas. Burle e Eraldo arrastavam o bote pela areia quando um guarda-vidas se aproximou meio desconfiado do que aqueles surfistas fariam com um barco feito para lagoas.

 

“Vocês sabem que esse barco não é feito para isso. Tinha que ser bote inflável, mais maleável, né?”, perguntou o guarda-vidas num tom respeitoso, depois de reconhecer os dois surfistas famosos.

 

Porém, nada faria que os dois desistissem da expedição. Minha curiosidade de achar a laje e a vontade de fazer uma boa matéria para o jornal garantiram meu lugar no barco. Naquele momento, eu já sabia que a empreitada era irresponsável, mas botei na balança os riscos e minha capacidade de evitá-los e me julguei apto a embarcar com a dupla. Ao entrar na água, Eraldo brincou: “Não tem adrenalina, a gente cria”.

 

A embarcação flutuou sem problemas na parte protegida do costão. Burle deu a partida no motor e esperou a sinalização de um amigo, que avisaria da areia o momento da calmaria. “Vai!”. O surfista deu tudo no motorzinho de 30 cavalos para passar a arrebentação entre as séries. Quando o barco chegou à área desabrigada, a primeira prova de fogo: o motor perdeu potência e, ao mesmo tempo, uma parede d’água tampou o horizonte.

 

Era a esperada hora de controlar o medo. Meus pulsos acelerados eram contidos na garganta, enquanto Burle e Eraldo discutiam para saber o que acontecia com o motor. A primeira da série foi superada no último suspiro, apenas porque Burle conseguiu deixar o barco de frente para a onda com o fio de potência ainda existente.

 

A segunda, que lembrou uma cena daquele filme sobre naufrágio com o Tom Hanks, me fez ficar com uma perna para fora do barco, esperando o pior. Afinal, um fiapo de espuma seria suficiente para afundar aquela casca de ovo de alumínio. Entre gritos, mais uma vez a dupla se entendeu e direcionou o barco para a única saída da arrebentação. Tomar a atitude certa, quando tudo dá errado, era a grande prova de controle do medo.

 

Passamos a arrebentação. No outside, Burle descobriu que o motor só estava mal encaixado. Rimos da quase tragédia e, juntos, fomos até a tal laje, para concluir que a melhor parte da aventura já havia passado. Não havia sinal de onda surfável no local.

 

Na volta, eles falaram de medo, de como é bom lidar com o medo de forma saudável, de como é importante não ficar paralisado pelo pânico. Não foi a primeira vez que me falaram disso, nem será a última. Mas será sempre uma lição e, talvez, a maior contribuição dos surfistas de ondas gigantes ao mundo dos homens normais.

 

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