Surf Seco

Memórias da Trindade

Taiu Bueno, Ilha da Trindade (RJ)

Taiu Bueno em ação na ilha da Trindade (RJ) no ano de 1986. Foto: Alberto Sodré / Fluir.

Era 1986, e fazendo uma ilustração de como era o cenário do surf no Brasil naquela época, profissionalmente ainda nem existia um circuito brasileiro.

 

O surf tinha bem menos gente, apesar de já contar com muitos adeptos. Era pouco se comparado à massificação nos dias de hoje…

 

O cenário era alucinante, não tão crowd. Maresias ainda tinha o estacionamento nos terrenos em frente à praia; eram vazios e hoje estão lotados só de mansões.

 

O acesso, que antes era por estrada de terra e praias, já era pela recém-inaugurada BR-101, asfaltada desde 1985. Antes disso, o acesso era muito demorado e feito por estradas de terra e praias tipo Bertioga, São Lourenço, Barra do Uma; tudo era por areia, via praia.

 

Taiu bate continência. Foto: Bruno Alves / Fluir.

Essa era uma época selvagem, antes de 1985, no litoral norte paulista. O campeonato mundial da ASP voltava ao Brasil, com o Hang Loose Pro que estreava na praia da Joaquina com ondas épicas de 8 pés na véspera.

 

Os eventos eram poucos – somente o campeonato brasileiro em Ubatuba e o nacional em Saquarema, em julho e janeiro, bem como o antigo Olimpikus, na Joaquina, que virou OP Pro no ano de 1985.

 

Depois de ter vencido o campeonato brasileiro de Ubatuba em 1984, estava em destaque. A revista Fluir existia desde 1983 e fui convidado junto com o local do Tombo, Guarujá, o jovem Amaro Matos, para fazer uma viagem de navio da marinha até uma ilha nunca explorada ou surfada, a 900 milhas no meio do Atlântico, a pequena ilha da Trindade.

 

Essa foi uma trip muito diferente, pois viajamos junto aos ?marines? brasileiros que nos chamavam de ?paisana?.

 

Alberto Sodré, de Ubatuba, conhecido como ?Beto Cação?, e Bruno Alves, legend e um dos fundadores da Fluir, foram os fotógrafos. Xan, irmão do Romeu Andreatta, e Fernando Mesquita, o ?Grilo?, foram na barca pela aventura e para escrever a matéria.

 

O embarque era em Niterói (RJ). Logo em nossa chegada ao cais, perto do navio, com o carro cheio de pranchas na capota, um militar gritou de dentro do navio. ?Não vai poder levar as pranchas, na ilha só tem pedras?.

 

Nem acreditamos nessa afirmação, mas depois de uma conversa, tudo foi resolvido. A trip ocorreu logo depois do regime militar e éramos surfistas, vistos com maus olhos, ainda mais pelos militares.

 

Embarcamos e ficamos instalados num alojamento, com camas pequenas e estrutura de ferro, forrados com lonas, sem nenhum conforto, estilo ?indo pra guerra?.

 

Essa era a minha primeira viagem de navio e tivemos que nos adaptar ao ?esquema militar?. As horas marcadas para almoço, lanche e banho corrido eram sinalizadas por apitos. Na época não parava de tocar a musica ?entrei de gaiato no navio… entrei, entrei, entrei pelo cano?.

 

Foram três dias e três noites de navegação, enjôos e novidades até chegarmos à ilha. Estava clareando quando avistamos uma rocha preta e alta no meio do mar. A ilha parecia mais a casa da bruxa, era sinistra.

No meio do Atlântico, a 1/3 do caminho da África, ali era propício ter grandes ondas, ainda mais no mês de outubro. 

 

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Taiu ataca o lip. Foto: Alberto Sodré / Fluir.

O propósito dessa viagem da Marinha era levar mantimentos e trocar alguns militares que ficavam lá por quatro meses.

 

O desembarque era feito com uma corda esticada do navio até a areia e em uma pequena balsa chamada de cabrita puxada no braço.

 

A água era azul-marinha e transparente. Os marinheiros jogavam linhas com isca e pescavam vários peixes pretos pequenos, eram carnívoros conhecidos como ?pufas?. Os dentes pareciam com as das piranhas.

 

Sabíamos também que ali era um viveiro de barracudas e elas são perigosas. As ondas bem pequenas facilitaram o desembarque, que normalmente demorava três dias.

 

Ilha é recheada de visuais encantadores. Foto: Bruno Alves / Fluir.

Por isso a nossa estadia foi curta, apenas uma tarde e uma manhã, mas a experiência ficou pra sempre. Desembarcamos e chegamos ao alojamento em uma das poucas construções da ilha.


A ilha é uma pequena montanha de rocha preta, por ser vulcânica, de uns 900 metros de altura. Dava pra ver as cabras pastando lá no alto, no meio da montanha, no limite do abismo. Havia caranguejos gigantes e azuis lá no alto da montanha.

 

Naquela tarde, eu e Amaro pegamos as pranchas e o Beto Cação seu equipamento. Saímos em busca de alguma onda ?surfável?.

 

Em frente ao alojamento era chamado de ?radiosonda? e parecia ser um pointbreak estilo Jeffrey´s Bay, só com pedras na frente.

 

Passando o morro havia uma praia, e a duna que existia na chegada, sem nenhuma pegada na areia, parecia até a lua.

 

A praia era com fundo de coral bem similar a Rocky Point, no Hawaii. As ondas de 1 metro eram tudo o que tínhamos disponível para fazer daquela aventura uma matéria para uma revista de surf.

 

Eu já tinha viajado com o Cação um ano antes. Tinhamos ido a G-land e Nias, na Indonésia. Estávamos habituados com a selvageria.

 

Deu pra pegar umas ondas, nada muito especial, mas valeu o registro de um lugar que fomos há mais de vinte anos e até hoje não vi e nem ouvi notícias de ninguém que tenha ido surfar lá.

 

À noite, antes de dormir, apareceu uma pessoa que parecia estar traumatizada com o mar dali. Ela carregava uma bíblia embaixo do braço e não acreditou que estávamos ali para surfar. Essa pessoa havia sido lavada por uma onda enquanto pescava nas pedras e conseguiu sobreviver.

 

O cara não parou de falar das mortes e das lendas e perigos que existiam naquele mar. O Amaro apelidou-o de ?O vendedor de grilo?. Realmente ele chegou com um saco de grilos, mas com as ondas pequenas, o único perigo maior na água seria um ataque de algum peixe selvagem.

 

Acordamos cedo no dia seguinte, voltamos à mesma praia e fizemos mais uma sessão. Infelizmente, ao meio-dia já estava na hora de partir. Se ficássemos ali, o próximo navio só viria depois de dois meses.

Embarcamos e assistimos ao pôr-do-sol e à ilha sinistra da Trindade ficando para trás.

 

Depois de alguns anos, li uma matéria sobre a ilha numa revista e vi fotos de ondas gigantes, emparedadas e expressas ?down the line?. Era o point da ?radiosonda? funcionando como havíamos imaginado.

 

Se pensar bem, ali é um pico no meio do oceano, com coral e água profunda. Eu, com a minha maior prancha 6´4, iria pagar um mico se realmente bombasse o swell..

 

Acredito que uma investida pra realmente pegar o swell seria conseguir levar um jet-ski e fazer tow-in, ou levar uma ?sunseteira? 8 pés com cordinha havaiana e ter muita disposição.

 

Talvez valha a pena para alguns aventureiros caçadores de emoções, tentar pegar essas ondas, mas acredito que existem muitos outros lugares no planeta com ondas de melhor qualidade e com acesso bem mais fácil…

 

Aloha!
 

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