Leitura de Onda

O despertar de um monstro

John John Florence, Quiksilver Pro France 2014, Hossegor.

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John John Florence acordou tarde, mas está cheio de fome. Depois de um semestre de resultados medíocres, o surfista, que um dia foi tachado de pouco determinado em competições, reapareceu cheio de si, dono da bola. Foto: ASP / Poullenot
 

John John Florence acordou tarde, mas está cheio de fome. Depois de um semestre de resultados medíocres, o surfista, que um dia foi tachado de pouco determinado em competições, reapareceu cheio de si, dono da bola. 

Foi o melhor no Taiti, mas perdeu para Kelly Slater na semifinal. Foi um dos melhores em Trestles, mas perdeu para Jordy Smith na final. No último domingo, foi o melhor na França. E, desta vez, venceu o evento. 

JJ é um fora de série, sobretudo em condições mais agudas. Dono de uma base neutra, quase relaxada, ele parece tratar a onda com certa indiferença. Mentira. Sua abordagem quase suicida – que às vezes o leva a perder baterias na busca pelo 10 – revela devoção pelas paredes de água, especialmente as ocas. 

Os velhos especialistas sugeriram ao havaiano que fosse mais competitivo e buscasse notas 8, em vez de arriscar o resultado pela nota máxima. Não, JJ não é disso. O moleque passou a errar cada vez menos e colecionar notas superiores a nove, em série. Não se regulou por medianas. 

O monstro JJ parece ter despertado de vez, para alegria da futura Liga Mundial de Surfe (que substituirá a ASP). O possível duelo por títulos entre Medina e John John, que se anuncia para o futuro, é uma mina de ouro para a entidade.

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O outro monstro da França, este renascido de um período infernal, foi Jadson André. Foto: © ASP / Kirstin
 

O outro monstro da França, este renascido de um período infernal, foi Jadson André. O potiguar adotou estratégia infalível: surfava sempre muito mais que seus adversários, para superar o achatamento sistemático de suas notas, que provavelmente se dá por sua linha pouco convencional e a base aberta. Como se ele fosse o único diferente do tour. Não sei por que, mas lembrei de Nat Young. 

Isso já foi discutido em outras colunas (clique aqui para ler “O bravo Jadson”) e, provavelmente, não se encerrará aqui. Jadson provavelmente vai seguir tendo que cortar um dobrado para avançar no WCT. 

No domingo, especialmente na semifinal, ele engoliu sem dó Jordy Smith, com duas das mais impressionantes ondas surfadas em toda a temporada: duas bombas, dois tubos, um para cada lado. 

Foi mais uma vez mal julgado, na minha opinião, mas a diferença era tão grande que não deu nem para o começo de uma reação. A estratégia deu certo. 

Na final, perdeu o ritmo das baterias anteriores e não achou as séries certas. Mas o resultado, repleto de méritos, leva-o para a lista dos classificados para a elite em 2015. Agora, vem Portugal, país em que ele, ano passado, ajudou a cimentar seu retorno ao WCT com uma consistente vitória em Carcavelos.

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Kelly Slater mais uma vez, este ano, falhou no bote final. Foto: ASP / Poullenot
 

Agora. vamos ao imortal Kelly Slater.  

O americano teve uma oportunidade de ouro de incendiar a disputa com Medina pelo título mundial, com o brasileiro fora do evento. Só que não, como diria minha filha. Mais uma vez, este ano, o americano falhou no bote final. 

A coisa foi dramática para Medina. Para alegria do americano, o comissário Kieren Perrow interrompeu estranhamente o evento logo após a derrota de Medina num mar absolutamente impossível de se traçar qualquer estratégia. Loteria pura. 

A perplexidade não está no fato de o campeonato ser interrompido, e sim de só ter sido interrompido depois da derrota do Medina. Instantes antes de o brasileiro entrar na água, Matt Wilkinson perdera a bateria precisando de uma reles nota 3. 

Se Medina botou a liderança em jogo numa roleta russa, por que Kelly não botaria? No dia, a decisão pareceu favorecer claramente o americano. 

Mas, coisas da vida, para decepção de Perrow, o dia seguinte se apresentou ainda mais lotérico e imprevisível. Estavam lá os tubos tão desejados pelo americano, mas também havia muita corrente, séries randômicas e sorte. Ou azar. 

Jordy, o algoz, não queria saber se Kelly lutava por algo muito maior que um bom resultado. Escovou o americano, sem piedade, com seus longos arcos em ondas pesadas. Kelly até achou um tubo de última hora, mas numa onda intermediária. Mais um quinto para a coleção do americano – o quarto no ano. 

Gabriel Medina, em condições diferentes, também ficou nas quartas-de-final pela quarta vez no ano. Veio surfando num modo morno até o round 4, quando fez uma apresentação sólida e mandou o campeão JJ e Josh Kerr para a repescagem.

Nas quartas, reencontrou o mesmo Kerr. 

Aqui cabe um parêntese, uma reflexão para julgamento: o australiano venceu a bateria, não há dúvida, não cabe chororô, mas seus arcos, que usam o fundo da prancha, sem pressão na borda, têm sido sistematicamente sobrevalorizados. 

Kerr é um excelente surfista de aéreos e tubos, mas está numa lista cinza que tem problemas com carving. Seria bom para o esporte que essas diferenças fossem explicitadas, valorizando surfistas que sabem usar borda em toda a sua extensão. 

Parece mesmo que alguém lá no céu quer ver Medina campeão, mesmo com toda a pressão do establishment. Depois dos resultados da França, o circo leva a sua tenda para Portugal, onde Medina já viveu fortes emoções. Em 2012, na final contra Julian Wilson, ela foi claramente prejudicado por um julgamento falho.

Se vencer a etapa este ano, no entanto, Medina levanta o troféu de campeão mundial de surfe, sonhado por milhares de brasileiros, em terras lusas. 

Com os descartes e uma possível vitória em Portugal, ele alcançaria 64.800 pontos. Kelly, com os descartes e vitórias nas duas últimas etapas do ano, alcançaria 63.100. Mick Fanning, o astuto tricampeão que sempre corre por fora, no mesmo cenário desenhado para o americano, chegaria a 61.350.

Isso, claro, sem falar das outras possíveis combinações, caso Slater ou Mick não vença as duas últimas etapas do ano, o que é o mais provável. A situação de Medina, portanto, ainda é bastante confortável para o título. É hora de o garoto de Maresias botar a faca nos dentes e, pelo menos, tentar ampliar a vantagem.

Correção: alguns bons leitores apontaram um erro de conta no cálculo das chances de título de Slater. O erro estava na soma dos quintos lugares do americano. O texto já está atualizado, com os dados corretos. Obrigado a todos. Abraços, Tulio. 

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