Leitura de Onda

Morte ao vivo?

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Mick Fanning e Julian Wilson emocionados depois da cena marcante na final do J-Bay Open. Foto: © WSL / Kirstin

 

O dono da onda finalmente mostrou sua fúria, ao vivo, em plena final da elite do esporte. Um tubarão, de barbatanas enormes, escolheu um grande sujeito – o tricampeão mundial e melhor surfista do pico – como presa. Ou esbarrou, sem querer, no surfista, no meio do caminho.

Não importa. Ele deixou claro quem manda ali.

Mick Fanning nasceu de novo. Poderia ter morrido em frente às câmeras, naquela que seria possivelmente a última imagem do surfe como um esporte competitivo que deseja ser grande.

Jamais entendi o modo com que a entidade máxima do surfe mundial, seja a extinta ASP ou a atual WSL, tratou esse risco, sem medidas específicas, como busca de novas tecnologias para minimizar o problema, em picos com largo histórico de ataques, como Margaret River e, claro, Jeffreys Bay.

Talvez seja pela cultura dos fundadores do esporte. Australianos, sul-africanos e americanos estão mais acostumados que nós a conviver com o dentuço dos mares. Muitos já viram ataques, outros têm amigos que já foram atacados. Talvez eles tenham naturalizado o risco.

Aqui em Pindorama, à exceção do Recife, onde o homem fez um estrago no ambiente e chamou os tubarões para a costa, não estamos acostumados a ver os bichos avançando sobre nossas pernas. Talvez, por isso, tenhamos mais medo que eles. Nosso tubarão ainda é o de Spielberg.

Australianos, sul-africanos e americanos também sabem mais que a gente que há novas tecnologias que tentam minimizar riscos de ataque à tubarão, como os pulsos eletrônicos do Sharkshield e a boia com sonar que usa satélites para informar sobre a presença dos bichos dentro d’água, patenteada por pesquisadores aussies.  

Leia mais sobre a boia

Leia mais sobre o sharkshield

É compreensível que um esporte praticado no mar incorpore os riscos inerentes a esse ambiente. Não há novidade no risco de ataques em determinadas praias. Está aí o ponto: o risco era mais que conhecido, e a entidade, pelo menos até hoje, não atuava de modo preventivo.

Talvez eles tenham percebido, neste domingo, o dano que uma morte ao vivo causaria ao esporte.

Vale, no entanto, o elogio para as medidas reativas da WSL. O locutor prontamente identificou o ataque e acionou o resgate. Em menos de 10 segundos, Mick estava são e salvo sobre um jetski e, logo depois, num barco. A equipe trabalhou de maneira perfeita, integrada, salvando também Julian Wilson e o comentarista de água Peter Mel.

Mick foi bravo ao lutar contra o tubarão e, aparentemente, espantá-lo até a chegada do resgate. Julian também, ao remar ao encontro de Mick quando o tricampeão perdeu sua prancha para o tubarão, ignorando os riscos. A quase tragédia terminou com dois heróis e um inesperado final feliz, mas a WSL não pode deixar esse roteiro aberto de novo.  

Só nos resta torcer, depois do maior susto da vida de um dos maiores atletas da história do surfe, que a entidade invista pesadamente em prevenção.

Quando a vida está em jogo, todo o resto se torna secundário. Mas vale falar um pouco sobre o surfe. Antes de o tubarão chegar, Mick era o dono absoluto da onda de J-Bay, o melhor surfista do evento. Seu surfe maduro parece a cada ano mais encaixado na direita sul-africana.

Ele é rápido, faz trocas de borda limpas, desenha movimentos com pressão e varia as manobras como poucos. Mick perdeu apenas para Gabriel Medina, na fase 4, não eliminatória, quando J-Bay parecia um beach break.

Julian chegou à segunda final consecutiva. Seu surfe redondo, de linhas refinadas e precisas, encaixa-se bem naquela onda, embora, diante de Mick, seus movimentos um pouco lentos. É um grande candidato ao título de 2015.

Adriano ficou em quinto e, com o inacreditável episódio da final, manteve a liderança da temporada por mais uma etapa, porque os dois finalistas terminaram empatados em segundo lugar na África do Sul. Seu surfe, no entanto, não esteve à altura das performances da perna australiana, embora tenha um reconhecido domínio sobre a onda de J-Bay.

Contra Julian, nas quartas-de-final, cometeu erros táticos, raros em seu jogo. Precisa reagir, buscar novas pranchas. Voltar a ser o competidor feroz que assusta as lendas do esporte.

Precisa voltar a ser o Mineiro.

Alejo Muniz, o convidado mais feliz do evento, surfou em J-Bay já garantido na elite em 2016, depois da vitória do QS 10.000 da África do Sul. Não lembro de ter visto algum surfista matematicamente classificado para o CT do ano seguinte no início de julho. A façanha mostra ao mundo o que é capaz de produzir a combinação de foco, dedicação e talento.

Em J-Bay, surfou muito bem em diversas fases, mas não se encontrou contra o melhor, Mick, nas quartas. Repetiu o quinto do ano passado e, de quebra, disse à elite que estava de volta.

Gabriel parece ter acordado. Depois de um início de temporada absolutamente apagado, com resultados pífios, o campeão mundial chegou em forma exuberante à África do Sul.

A vitória na chamada Super Heat, contra Mick e Kelly, não foi seu melhor em J-Bay, porque o mar estava infame no momento da disputa. O brasileiro surfou muito bem durante todo o evento, com muita pressão, um repertório moderno (difícil de ser executado na onda)  e, sobretudo, fúria competitiva – o que, nas últimas etapas, ele não tinha mostrado.

Nas quartas, contra Kelly, vi um resultado polêmico.

O americano não finalizou suas duas melhores ondas e exibiu um repertório nitidamente com menor pressão do que o do brasileiro, sobretudo na primeira manobra da onda. Tive a sensação, durante todo o evento, que a prancha de Kelly não estava ajustada a seu surfe.

No entanto, pesa a favor do 11 vezes campeão a linha absolutamente irretocável que desenha na onda sul-africana, com todos os movimentos ajustados sem qualquer ruído na transição. E, nesse quesito, Gabriel tem espaço de evolução – é apenas a segunda vez que compete em J-Bay.

Surfe é interpretação. Desta vez, os juízes viram a vitória do Kelly. Em outras, deu Gabriel.

O jogo volta ao modo “on”, se Deus quiser sem tubarões nas pernas dos surfistas, no Tatiti, paraíso em que, ano passado, Gabriel viveu a vitória mais marcante de sua vida.  

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".