O ciclo das Wahines

Fernanda Guerra, primeira surfista do Brasil, no Arpoador

As meninas estão invadindo as praias. Foto: Rogério Rubber.

Este texto foi originalmente publicado na revista Alma Surf, e seu objetivo principal foi homenagear as mulheres que ultimamente tem estado conosco nos “outsides” da vida.

 

Entretanto, como poderá ser lido abaixo, em uma parte do texto emito minha opinião a respeito das meninas que se sentem felizes quando tem seu surfe comparado ao surfe dos meninos.

 

Embora não tenha conversado diretamente com nenhuma menina, fiquei sabendo que algumas delas se sentiram ofendidas com o meu texto. Que pena! Peço desculpas publicamente… Não foi essa a minha intenção. Mas, homens e mulheres são seres diferentes, e isso não é uma questão de opinião! São diferentes biologicamente, socialmente, psicologicamente, fisiologicamente, etc.

 

Logo, acho sensato que em um campeonato de surfe feminino exista um critério como feminilidade, e mulheres que tem seu surfe comparado ao de homens devem ter há muito tempo perdido a feminilidade, pois no meu entender, agressividade, força, potência e explosão são atributos eminentemente masculinos e se encaixam nos critérios da masculinidade.

 

Patrícia Sodré mostra estilo e feminilidade na Barra da Tijuca (RJ). Foto: Márcia Portes.
Os atributos femininos são a delicadeza, a graça, a leveza, a suavidade, a flexibilidade, etc… Muitas meninas surfam assim, assumindo a singularidade de seu gênero. Lisa Andersen é um bom exemplo. Patrícia Sodré, July Marques e Márcia Portes do Longboard são outros.

 

Mas, esse papo dá muito “pano para a manga”. Na realidade, existe espaço para todo mundo no surfe. Homens e meninas, vovós e vovôs, boiolas e sapatonas, etc. No surfe cabe o mundo todo e o que importa é ser feliz e se divertir! Abaixo o preconceito!!!!!!

 

Que bom! Porém, particularmente, nutro minhas preferências e me preservo desse direito. No caso de mulher, gosto do tradicional: meiga, singela, cheirosa, suave, etc. E creio que se Vinícius de Moraes estivesse vivo, com certeza falaria: Que me perdoem as surfistas marrentas e trogloditas, mas delicadeza é fundamental. Está aberto o fórum de discussão!

 

Recentemente reli um livro muito interessante cujo nome é Passagens, Crises Previsíveis da Vida Adulta 5. Nele, a autora explicita alguns dos momentos críticos pelos quais a grande maioria das pessoas atravessa no decorrer de suas vidas. Essas crises são ciclos importantes, onde geralmente somos confrontados com a dura necessidade de se fazer escolhas, opções. Toda escolha acarreta uma nova conquista e também uma nova perda, uma nova renúncia, o que na maioria das vezes pode ser dolorido, muito embora patrocine nossa evolução.
 

Fernanda Guerra, primeira surfista do Brasil, no Arpoador. Foto: Arquivo Pessoal.
Meditando sobre os ciclos da vida e sobre meus próprios ciclos, devaneei sobre o ciclo de desenvolvimento do surf feminino no mundo e no Brasil. Creio que a história das meninas surfistas (wahines), como todas as outras histórias, também é cíclica e permeada de altos e baixos, conquistas e perdas.

 

O passado do surf é algo desconhecido por todos nós, ao menos quando se trata do surf primitivo, aquele feito antes do século XX e iniciado provavelmente há milhares de anos atrás em algum lugar da Polinésia. Porém, os poucos relatos existentes nos concedem uma visão poética desta nobre arte. Sabe-se que o surf era um dos pilares da cultura indígena polinésia e que foi praticado indiscriminadamente por meninos e meninas, homens e mulheres.

 

Sabemos pouco das wahines desse remoto passado 1,2,4. A história das meninas começa a ser mais bem explicitada a partir da consolidação da arte do surf em águas californianas. Lá, por volta dos anos trinta do século passado, algumas mulheres especiais já ensaiavam sua participação ativa na cultura embrionária de nosso esporte.

Entretanto, talvez por questões culturais ligadas ao machismo e a pré-conceitos sociais, muitas meninas tenham sublimado seus desejos surfísticos mais íntimos.

 

A Califórnia possui até loja dedicada especialmente às mulheres. Foto: Sean O Brien/Site Transworld..
Contudo, a Califórnia ainda é um dos poucos lugares do mundo onde podemos observar inúmeras mulheres se divertindo nas ondas do oceano, inclusive jovens senhoras de sessenta, setenta anos!2 No Brasil, o movimento feminino trilhou um caminho muito mais lento e creio que muito mais árduo para nossas wahines.

 

Apesar de algumas heroínas como Fernanda Guerra e Maria Helena Beltrão terem encabeçado um movimento feminino no Rio de Janeiro nos anos 50 e 60 3, tal movimento não se solidificou, muito provavelmente por causa das restrições impostas pelo mesmo machismo já comentado anteriormente, agora acrescido e amplificado por uma latinidade muitas vezes perversa em seus precoces julgamentos morais.

 

Depois dos anos 60, alguns movimentos cíclicos de ressurgimento da causa feminina puderam ser observados. Lembro-me de quando inaugurei a Escola Radical de Santos, uma escola de surf pública, tive literalmente milhares de alunos passando por lá e o mais impressionante era que o número de meninas sempre ultrapassava o de meninos, isso desde 1990, data da inauguração da Escola!

 

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Lisa Andersen sabe ser radical sem perder seu jeito de mulher. Foto: Divulgação.
Entretanto, elas sempre foram mais volúveis, ora apaixonando-se de forma avassaladora pela sublime arte de caminhar sobre as águas, ora sumindo repentinamente por meses, para depois retornarem. Recordo-me de que cheguei a compor uma canção em minha viola, onde comparava as mulheres aos ciclos lunares e às variações das marés e do swell: “Minha lua mulher… brilha imensa no meio do mar, imersa num mistério qualquer…”.

 

Talvez tenham sido os fatores acima explicitados, os responsáveis pelo impedimento da real solidificação da categoria feminina no Brasil. Porém, mesmo de forma modesta as meninas foram deixando suas marcas, pois efetivamente são diferentes dos homens; ciclam mensalmente. Alteram seu humor e seu comportamento em questão de minutos.

Elas variam com os ciclos da natureza e é provável que isso as conecte mais intimamente ao oceano. Há indícios de que seus hemisférios cerebrais direito (abstrato) e esquerdo (racional) comunicam-se com mais facilidade, o que as tornaria de fato mais intuitivas e emotivas do que a maioria dos meninos com quem as mesmas têm dividido as ondas do mar.

 

Leilani Gryde. Quem não iria liberar a melhor da série para uma surfista com cara de anjo? Foto: Karen Wilson/ ASP.
A singularidade das meninas manifesta-se até mesmo em algumas patologias que somente acometem mulheres esportistas. A tríade da mulher atleta é uma síndrome que envolve distúrbios alimentares, hormonais e comportamentais que costuma atingir as meninas que se esforçam fisicamente em demasia ao tentar aproximar suas marcas esportivas de seus companheiros masculinos 7.

 

Mas, uma coisa é certa: o sorriso das meninas no mar é algo encantador! Sorrisos verdadeiros, repletos de mágico encanto e de envolvimento integral. Quando as meninas surfam, elas realmente estão presentes… realmente sentem-se filhas de algo maior!

Contudo, sinto-me confuso quando analiso a situação atual do surf feminino no Brasil.

 

Muitas vezes fico feliz pelo fato de perceber que o atual crescimento desta categoria em nosso país parece agora ser irreversível. Muitas coisas boas têm acontecido e dentre elas posso citar o crescimento do mercado surfwear feminino, que gera empregos e aquecimento econômico, além da parcial vitória das meninas contra o preconceito que as perseguiu covardemente durante todos esses anos. Porém, preocupo-me quando percebo que algumas dessas mesmas heroínas, talvez atordoadas com a nova realidade, principiam em perder sua identidade na medida em que se orgulham quando são comparadas aos homens, ao invés de orgulharem-se de sua feminilidade singular tão necessária nos line ups agressivos e mesquinhos dos dias de hoje.

 

Marcia Portes mostra sensualidade até para carregar os longboards. Foto: Arquivo Pessoal.
Entristeço-me quando vejo algumas belas wahines com somente dois ou três anos de surf, engajarem-se agressivamente na luta pelo estabelecimento de um profissionalismo ilusório, distante, precoce e nefasto (ao menos para algumas categorias como a longboard, por exemplo), uma vez que esta atitude tem produzido rivalidades infantis e desagregadoras entre algumas meninas, fazendo-as enxergar o surf somente através de um prisma, no meu ver, o mais externo deles… a casca de algo que é muito mais nobre, sereno, profundo e enaltecedor.

 

Mas, no pesar da balança, ainda sou otimista e acredito que a derradeira conquista das ondas pelas meninas trará um pouco mais de paz, amizade e tolerância para o seio deste esporte que tanto amamos e que devido ao seu crescimento exponencial corre o risco de perder sua pureza. Creio que a essência matriarcal das meninas possa de fato, acolher o verdadeiro espírito do surf em seus ternos braços e devolver-lhe ao menos parte de seus nobres ideais pretéritos, ou seja; confraternização verdadeira, amizade sincera e diversão descompromissada.

 

Aloha wahines, sejam bem vindas!

 

Referências Bibliográficas

 

A meiga havaiana Megan Abubo em um momento de explosão dentro da água. Foto: Karen Wilson/ ASP.
1- Finney, Ben & Houston,James.D. – Surfing, A History of Ancient Hawaiian Sport – Pomegranate Artbooks. San  Francisco, 1995.

 

2- Gabbard, A. Girl in the Curl – A Century of Women in Surfing. Midas Printing. Hong Kong, 2000.

 

3- Gutemberg, Alex. A história do surf no Brasil. Grupo Fluir. Editora Azul. São Paulo, 1989.

 

4- Kampion, Drew & Brown, Bruce. – Stoked – uma história da cultura do surfe – Benedikt Taschen Verlag Gmbh. First published by General  Publishing Group, Inc. Los Angeles, 1998.

 

5- Sheehy, Gail. Passagens – crises previsíveis da vida adulta. Francisco Alves. Editora. 15a edição. Rio de Jeniro, 1991.

 

6- The 25 Most Influential Surfers of All Time. Surfer Magazine – 40th Anniversary, 40:10. October, 1999.

 

7- Yeager, K.K.; Agostini, R.; Nattiv, A.; Drinkwater, B. – The female athlete triad: disordered eating, amenorrehea, osteoporosis. Medicine & Science in Sports & Exercise, p. 775-777, 1993.

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