Que o Hang Loose Pro Contest foi um marco na história do surf brasileiro há 30 anos e inovou o formato de campeonatos, todos sabem. Mas muita gente não conhece o homem que idealizou o evento e, de uma certa forma, foi o “pai” ou o “professor” de toda uma geração responsável por construir o que o surf é hoje, como competição e organização. O catarinense Flávio Boabaid hoje já não organiza mais campeonatos, é consultor financeiro e até inventor.
O surf tornou-se só o prazer de pegar ondas, sem stress. Mas três décadas atrás, ele encarou um desafio, o de realizar uma etapa do Circuito Mundial de Surf, trazer de volta ao Brasil os melhores do Mundo e, assim, colocar o surf brasileiro no cenário. Mais do que isso, servir de padrão para os exigentes critérios da ASP (hoje WSL – World Surf League), além de ser o pontapé para fortalecer o trabalho que vingou e teve como principais resultados nada menos que dois títulos mundiais, com Gabriel Medina, em 2014, e Adriano de Souza, em 2015.
Afastado dos palanques há mais de 20 anos, ele foi convidado a ser o diretor de prova no Hang Loose Pro Contest 30 anos, no mesmo palco, a Praia da Joaquina, em Florianópolis – uma homenagem do atual organizador (e também diretor geral da WSL na América do Sul) Xandi Fontes, por sua iniciativa.
O cargo não é de figuração. Flávio sabe como trabalhar e arregaça as mangas para deixar tudo nos trilhos, mas a tarefa agora é infinitamente mais fácil, mais tranquila. Muito do que ele já “plantou” lá atrás. “A sensação é de prazer, muito orgulho, por ter plantado tantas sementes boas, não só na preparação dos surfistas, mas todos que vivem em volta das competições. Vários deles entraram no Circuito Mundial e estão seguindo até hoje”, diz.
“Foi criado uma nação com DNA diferente, que tem muito orgulho. A gente estabeleceu uma série de inovações em 1986, que a WSL utiliza até hoje. Como a Beach Byte (hoje Ziul Scores, sistema oficial da WSL para a computação das notas dos atletas e também transmissão ao vivo via web) e a sala de imprensa. Hoje é coisa normal, mas 30 anos atrás, não senhor! Ia apanhar para mandar matéria”, recorda.
“Era um grande desafio. Colocamos tradutores, área vip para atletas, outra inovação. Antes ficavam na praia. A gente primou por fazer a coisa bem feito”, segue descrevendo. “Hoje, 30 anos depois, posso dizer: Poxa! Foi muito bacana esse trabalho. Faria tudo de novo…”, comemora Flávio.
Ele confessa que não pensou duas vezes para aceitar o cargo provisório de uma semana de volta à praia. “Sou consultor financeiro, trabalho de terno e gravata, ajudando os outros a economizar. Enfim, um executivo. Quando eu soube que ia ter o Hang Loose e o Xandi me convidou para ser diretor de prova, não pude evitar. Nem pensei em não ser”, comenta.
“Sabia que era uma homenagem muito bacana. É algo que faz parte da minha vida. Um momento marcante da minha vida e tenho certeza, de Florianópolis e até do Brasil. A gente mudou o capítulo. Estou aqui e não sei o que passa lá fora. É muito bacana esse prazer de estar com tantos amigos”, acrescenta Flávio.
Depois de ser um competidor, com conquistas, como o Estadual em 1979, ele decidiu morar nos Estados Unidos. Passou oito meses, aprendeu o idioma e se preparou. “Ao voltar, apareceu a oportunidade de realizar um campeonato. Fizemos o Olympikus em 82, foi um sucesso, repetimos em 83 e 84 e depois veio o Op Pro em 85”, ressalta.
A história do Hang Loose Pro Contest começou quase que por acaso. Boabaid já tinha a expertise na organização de campeonatos de grande porte na mesma Joaquina e a ideia da etapa do Mundial partiu do norte-americano Ian Cairns, então da presidente da ASP, durante o simpósio realizado em Floripa.
“Em 86, quando recebi a equipe americana da NSSA (Nation Scholastic Surfing Association), o time olímpico de surf, decidi fazer um simpósio para atletas, juízes, com o Ian falando da interpretação das regras. Teve uma grande receptividade. Foi uma semana em Florianópolis e uma no Rio de Janeiro. E ele sugeriu a etapa do Circuito Mundial. Achei que era só organizar, crente que ele ia dar o dinheiro”, recorda.
Ian explicou que era preciso pagar a taxa de inscrição do evento e a premiação. “Que era uma baita grana”, destaca Flávio. Nesse momento entrou outro personagem importante, Claudio Martins, o Claudiones, proprietário da extinta Revista Fluir. Foi ele quem trouxe a Hang Loose, na época uma empresa ainda ganhando seu espaço no mercado.
“O Álfio (Lagnado) foi ao Rio nos encontrar, fomos ao Centro com o Ian e ele depositou 5 mil dólares na conta da ASP pela filiação. Ali começava o Hang Loose Pro Contest. E faltava tudo a ser feito”, relembra Flávio, que entre várias histórias cita a invasão ao gabinete do governador Espiridião Amin para garantir o apoio ao evento. Outra passagem marcante é a da chegada dos atletas estrangeiros.
Todos vieram num mesmo voo. Eram 70 surfistas vindo de Los Angeles, que foram recepcionados pessoalmente no Rio por Flávio e Alfio. Na escala feita em Curitiba, Al Hunt, então Tour Manager da ASP avisou que as pranchas estavam sendo retiradas do avião. A Varig queria espaço para embarcar equipamentos da seleção japonesa de futebol.
Os dois anfitriões se movimentaram, falaram até com o comandante da aeronave e as pranchas viajaram até Florianópolis espalhadas nos banheiros, cozinha, corredor. No desembarque, surfistas já com as pranchas nas mãos. “Tivemos de bater o pé, para firmar posição”, fala o consultor financeiro, cheio de momentos para descrever, sobretudo da edição de 1986, como se tivessem acontecido há pouquíssimo tempo.
Depois do histórico campeonato, Boabaid ainda promoveu o Hang Loose enquanto o evento foi em Floripa. Em paralelo foi Tour Manager da ASP na América do Sul e representante da ISA (International Surfing Association) no Brasil. Também repetiu o sucesso do Intercâmbio Brasil-Estados Unidos por mais cinco anos.
“Estávamos em outro momento. Não tínhamos um atleta que batia cabeça com eles, como o Gabriel Medina bate com o John John (Florence) e o Kelly Slater. Eles corriam com cavalo de sangue inglês e nós com pangaré. Eram mais velozes, tinham mais estilo, mais harmonia, mais controle”, argumenta.
Outra conquista de que se orgulha é que ajudou o surf a ser reconhecido como esporte no Brasil, indo ao CND (Conselho Nacional de Desportos) numa reunião com o presidente Manoel Tubino. “Minha meta era ser o melhor. Depois de 1986, o Al Hunt fez um memorando dizendo que todos os eventos deveriam seguir o que foi o Hang Loose e isso se repetiu em 87, virando um padrão. O Hang Loose virou referência”, enaltece.
“Depois daquilo, precisava de novos desafios. Acho que como organizador cheguei no máximo e queria desenvolver coisas novas. Me sinto orgulhoso”, complementa Flávio Boabaid que sempre surfa de pranchinha, principalmente nas praias do Campeche e, claro, Joaquina.
E, disposto a continuar inovando, usou uma das paixões dos surfistas, a defesa do meio ambiente para uma nova empreitada. Uma invenção. Criou o banheiro ecológico. “Que não usa água, não tem esgoto, não tem tratamento químico e não tem cheiro. Estamos colocando este ano aqui no Hang Loose. O surfista sempre tem isso de ajudar a natureza e estou dando minha contribuição”, completa.