Leitura de Onda

O dia para sempre

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Carlos Burle luta contra a avalanche em Nazaré. Foto: Arquivo Cristian Beserra.

Maya Gabeira passa por apuros depois de encarar a fúria portuguesa. Foto: Reprodução.

Todo homem tem um marco, um ponto de mutação, algumas horas que o definirão e justificarão a sua existência por toda a vida, quando tudo acontece no limiar entre a tragédia e a glória eterna. Carlos Burle viveu, na segunda-feira, 28 de outubro de 2013, em Nazaré, o seu dia para sempre.

 

O mar estava incontrolável, com massas d’água jamais vistas. Burle acordara cedo com seus parceiros Maya Gabeira, Pedro Scooby e Felipe Cesarano em busca da maior das bestas. É uma missão quase suicida, que esse pernambucano segue por profissão e, sobretudo, por vocação.

 

Nenhum ser humano sem vocação se arriscaria naquele dia. 


Primeiro, foi a Maya. A imagem da surfista cinco vezes vencedora do XXL boiando de bruços, inanimada, em meio à fúria de Nazaré, paralisou meio mundo. Era quase inacreditável: como aquela menina cheia de vida e glórias estava ali, a um fio tênue da morte?


Burle tinha tentado resgatá-la pouco antes, sem sucesso. Restou ao surfista abandonar o jet-ski, tirar sua cabeça da água e lutar com todas as forças para retirá-la ainda viva da água.


Ali, naquele instante, Burle viveu entre dois mundos distintos. Se não conseguisse reanimá-la, se Maya não voltasse ao nosso convívio, além da óbvia tragédia da perda de uma grande atleta, a vida do pernambucano estaria marcada para sempre.


Maya é mulher feita, com idade para assumir o risco de suas escolhas. Burle não seria culpado por uma eventual tragédia, mas provavelmente se sentiria responsável por tudo, diante de tudo o que ele representa para a surfista.


Mas a vida é feita de instantes, e no átimo seguinte lá estava o pernambucano, sem perder a razão, na areia, com um importante anônimo ajudante, trabalhando intensamente para trazer Maya de volta à vida. Diante dele, corpo estirado na areia, estava a amiga, a pupila e parte importante de seu destino.


O vômito de Maya foi o melhor dos presentes: trouxe a vida de Maya de volta. Ela estava a salvo, e aquele golfo transformava a quase tragédia numa história de heróis.


O dia estava apenas começando. Burle, herói ainda marcado pela quase tragédia, decidiu voltar para a água. Iluminado, ele recebeu o maior dos presentes do destino: a mítica e procurada besta de aproximadamente 100 pés, que apareceu na sua frente, ao alcance do jet pilotado por Scooby.


Burle posicionou a prancha em busca da parte mais crítica, porque sabia que isso, mais tarde, seria considerado na avaliação do tamanho da onda. Falava mais alto, ali, o surfista profissional. Isso fez com que, depois de ter completado o drope, uma avalanche gigante de espuma varresse o surfista.

 

Ele desceu a onda, não caiu no drope e o resto é história. Para sempre.


Uma história que nem grandes mitos do esporte, como Laird Hamilton, conseguem derrubar. Laird foi, antes de tudo, descortês ao descaracterizar a onda de Burle e tirar a legitimidade da cinco vezes vencedora do XXL Maya como big rider. Numa só tacada, ele desrespeitou a memória de Mark Foo (1994), Donnie Solomon (1995), Todd Chesser (1997), Peter Davi (2007), Sion Milosky (2011) e tantos outros que entregaram suas vidas às ondas gigantes.


Em condições incontroláveis como as de Nazaré, no dia 28 de outubro de 2013, não há níveis seguros para o surf. Maya correu enormes riscos, sim. Burle, também. Em maior ou menor medida, todos ali correram – e correrão – risco iminente sempre que estiverem perto da brutal força da natureza.

 

É um desafio de vida e morte e, por isso, tão fascinante para mortais. É o mundo real, sem filtros ou roteiros, e nem sempre tem o final feliz de um filme havaiano de Hollywood.

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".