Leitura de Onda

“O grande sonho é ganhar Bells”

Gabriel Medina e Charles, Quiksilver Pro France 2016, Landes.

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Charles Saldanha é o pilar, o elemento de equilíbrio indispensável à família Medina. Foto: Cedric de Barros.

Ele é o pilar, o elemento de equilíbrio indispensável à família Medina. Quem já esteve perto do campeão mundial de 2014 sabe da importância de Charles Saldanha em tudo o que aconteceu com a família Medina. Charlão está ali, nos bastidores, num incansável trabalho de técnico, planejador, incentivador e, claro, de pai de criação.  

Gentil, educado e generoso, ele sabe quando endurecer. No trabalho, vira um rolo compressor, um xerife que foi capaz de, certa vez, barrar ostensivamente a aproximação de Kelly Slater quando Gabriel, impúbere, debutava no circuito. Evitou que o americano usasse o conhecido recurso do jogo psicológico.  

Bati um papo com o técnico – o primeiro mais longo desde as entrevistas que fiz para o o livro sobre o atleta, publicado faz dois anos. Charlão não tem medo de dar opinião nem de cara feia. Falou abertamente sobre temas sensíveis: fechou a tampa da derrota em Trestles, fez uma análise sobre o futuro do atual campeão mundial John John Florence e revelou os erros e acertos do pupilo no ano passado. Ainda teve tempo de apresentar os planos para 2017 e dar detalhes sobre o fundamental Instituto Gabriel Medina, um sonho conjunto do surfista, de Simone e dele próprio.

Cabe aqui uma deferência necessária: até onde minha memória alcança, é a primeira vez na história do surfe que um atleta da elite cria um instituto desse porte sem qualquer fim lucrativo e com um propósito exclusivamente social e esportivo. Mais um título para a família. Talvez o maior.

Leia abaixo a entrevista:

Preparação para 2017

Este ano a temporada começa um pouco mais tarde, no dia 14 de março. Por conta disso, poderemos fazer uma pré-temporada um pouco mais intensa, com dois períodos de treinamento físico de dez dias, em vez de um só. Vamos fazer a primeira parte, interromper, fazer uma viagem de surfe – ou para um pico próximo ou para algum lugar mais perto da Austrália – e depois retomar o treino. Se ficarmos perto, voltamos ao Brasil e finalizamos aqui o treinamento físico. Se formos para mais longe, encerraremos a preparação no pico em que estivermos, levando o treinador.

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“Onde o Gabriel pior surfa? Ninguém precisa me dizer. É em Bells”, diz Charles. Foto: © WSL / Robertson.

 
Expectativa em Snapper

Snapper é uma onda que o Gabriel domina. Tem a prancha certa faz tempo, surfa vertical. Perdeu ano passado por pouco para o Stuart Kennedy e, ano retrasado, naquela interferência no Glenn Hall. Em 2014, venceu. Poderíamos ir antes para a Austrália. Só não vamos porque a longa permanência desgasta muito, a perna é muito comprida. São três etapas, é desequilibrado em relação aos outros países que sediam eventos.

O desafio de Bells

Buscaremos na pré-temporada uma direita, talvez uma direita mais cheia. Onde o Gabriel pior surfa? Ninguém precisa me dizer. É em Bells. Por isso vamos focar nesse aprimoramento. Temos o grande sonho de ganhar Bells, por causa do desafio. Ele chega sempre a etapas como Fiji e Taiti como favorito. Lá não. Se Deus quiser, será já em 2017. Se ele não ganhar, que pelo menos mostre que realmente evoluiu. Quero ouvir gente elogiando, dizendo “caramba, Gabriel surfou bem lá.”   

O sonho de vencer no Brasil

Os principais resultados dele na elite foram sem torcida, mas ele tem uma vontade muito grande de vencer no Brasil. Sempre que está a caminho, na volta da etapa anterior, fala que quer muito vencer para dar o título à galera. Poder ganhar em casa seria demais, uma conquista sem dúvida especial.

A etapa poderia ser em qualquer lugar – Saquarema, Maresias ou mesmo no Postinho, pico que era rejeitado por muitos, mas que eu achava bom para a alta performance. Dava espetáculo legal. Claro que adoramos Maresias, mas Saquarema também tem ondas interessantes para o tour, também seria uma boa escolha.

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“Gabriel sempre teve carta branca para surfar com qualquer prancha, nunca foi preso a ninguém, mas está muito bem com o Cabianca”, revela Charlão. Foto: WSL / Poullenot.

 
O trabalho de Portugal

Temos consciência de que Portugal é uma etapa que também precisa ser trabalhada, apesar do bom resultado de 2012. Ano passado, houve uma mudança de pico, e ele ainda não tinha surfado na nova onda. Estava treinando em Supertubos, tinha se adaptado bem à prancha naquele pico, mas a bateria acabou rolando em outro lugar.

Parceria com o Cabianca

Gabriel sempre teve carta branca para surfar com qualquer prancha, nunca foi preso a ninguém, mas está muito bem com o Cabianca. É uma longa parceria, que tem dado certo, e vai continuar. Ele testou um pouco a JS no início do ano, porque é australiana, e ele sabe que tem que melhorar nas primeiras etapas do ano. Às vezes vale surfar com a prancha de um shaper local, como o Gabriel já faz com as Tokoro no Havaí. Mas é praticamente certo que ele, ainda sim, como sempre, surfe com as pranchas do Cabianca na perna australiana.

Importância do início da temporada

As primeiras etapas da temporada são sempre muito difíceis. Todo mundo quer muito vencer, todo mundo está muito treinado, todo mundo ainda sonha com uma corrida real rumo ao título. Em outros anos, como os dois últimos, o Gabriel não foi bem lá e disputou o título. Sabemos que temos trabalho a fazer para a Austrália, para sair em situação melhor para o resto da temporada.

Análise da última temporada x previsões para 2017

Achei o ano passado muito equilibrado, sem um grande favorito. Todo mundo deu chance aos outros. Acho que pelo menos as próximas duas temporadas serão mais difíceis, sem tanto tropeço dos líderes, como aconteceu em 2016. Vai voltar a ser aquele velho modelo, em que um cara com três, quatro 13o lugares está completamente fora da disputa do título.

Este ano, estou sentindo nitidamente o Gabriel mais maduro, mais seguro de si, muito focado na vitória. Ele me passa a confiança de que virá forte.

O John John também deve vir forte, mas ainda é uma incógnita, porque é logo após o título, a tendência é relaxar um pouco. E também porque até pouco tempo atrás, na hora decisiva, ele às vezes errava. Minha avaliação, hoje, é de que ele não será um fenômeno competitivo para a história, com muitos títulos, mesmo que seja um excelente surfista e seja o preferido do circuito mundial. Talvez ele ganhe mais um ou até dois títulos, como outros ganharam. Todo mundo sabe que ele é o favorito, mas ninguém ganha bateria sendo o favorito. Acho até que essa zona de conforto é perigosa para ele. Para além disso, é um excelente surfista. Sabemos disso.   
 
Em 2017, além do JJ, vejo como candidatos o Gabriel, o Mick Fanning, o Kelly Slater… acho que o Julian Wilson, se começar bem, pode chegar. O Jordy Smith deve ficar nas cabeças, mas ainda não sei se consigo vê-lo com um título mundial.

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“Este ano, estou sentindo nitidamente o Gabriel mais maduro, mais seguro de si, muito focado na vitória. Ele me passa a confiança de que virá forte”, afirma Charles. Foto: WSL / Rowland.

 
As lições de Trestles em 2016

Na história do Gabriel, ele é conhecido por nunca desistir, mas aquele episódio nos deixou decepcionados. Foi um erro nosso. Não percebemos, naquele momento, que o que foi dado a gente não pode mudar, temos que buscar reverter as coisas dentro d’água. Não tem que ficar decepcionado, magoado, tem que trabalhar, transformar a energia numa coisa boa. Se houve uma falha, em 2016, talvez tenha sido a de entrar no jogo da decepção. A gente não poderia ter se abatido. Frustação e decepção não podem mais estar no nosso dicionário. Qualquer um perceberá que aquele foi um ponto crucial para o ano do Gabriel. Não foi bom para ele, para mim também não, mas ficou uma lição. Na próxima vez, não vamos mais nos frustrar com derrotas.  

Se os profissionais (juízes) estão lá para fazer o negócio, deixe eles fazerem o serviço deles. Nós temos que fazer o nosso, que é trabalhar para o Gabriel surfar cada vez mais, encantá-los com o surfe, não com pressão fora d’água. Sempre foi assim, terá sempre que ser assim. Ali, em 2016, ficamos abatidos. Agora, Gabriel está mais maduro, e eu estou mais maduro. Prontos para o trabalho. Assim é a vida.  

Pioneirismo do Instituto Gabriel Medina

Acho que realmente é a primeira iniciativa de um surfista da elite do circuito mundial mais estruturada, como você diz. Ouvi dizer que o Jeremy Flores já teve alguma coisa do tipo com a Quiksilver, mas não era o mesmo formato. Hoje, temos 38 alunos de 10 a 16 anos, que vão à escola e depois passam o dia no instituto. Nas quase seis horas que ficam lá, além de surfarem, eles têm aulas de inglês, informática, treinamento funcional e natação, além de acompanhamento médico integral e acompanhamento técnico. Quando estou no Brasil, estou lá todos os dias.

Todos ali sonham ser campeões mundiais. Trabalhamos com a perspectiva de transformar em surfista profissional pelo menos 30% deles. Se conseguirmos aumentar esse percentual, ótimo. De todo modo, os demais se tornarão cidadãos preparados para a vida. Essa é a ideia.  

Manutenção do instituto   
 
Para realizar o sonho, que era do Gabriel e da Simone, de devolver um pouco do que a família ganhou para a comunidade, foram investidos algo em torno de R$ 3,5 milhões e tivemos a ajuda de patrocinadores parceiros na construção. Hoje, o instituto, com cerca de 20 funcionários, é inteiramente bancado por patrocinadores, o que dá mais força à iniciativa.

O projeto não tem fins lucrativos, nasceu com missão social e esportiva. Já até ofereceram modelos de negócio para a gente, mas não é o caso.

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