Estilo, em tese, é um substantivo que designa um traço pessoal, uma característica capaz de provocar o reconhecimento do próprio frente ao comum. Mas é, por inversão, o que torna possível identificar algo que é comum naquilo que é próprio.
Contamos nos dedos alguns estilos que, de tão peculiares, tornaram-se assinaturas reconhecidas à distância, ao mesmo tempo, que são marcas de um tempo. É claro que nem sempre a assinatura agrada, entretanto, ela está lá: traço de identidade e representação de uma geração.
Shaun Tomson, por exemplo, surfava o fino, mas o seu estilo estava longe de ser polido. Agora, isso não implica uma desqualificação do surf de Tomson, pois não acredito haver alguém em sã consciência que possa dizer, de dedo em riste que este sul-africano não surfou nada.
Em outra chave: seria possível não identificarmos, de cara, uma onda de Tomson e atribuí-la a um estilo de surfar característico de uma geração? Eu acho que não. As ondas dele eram dele e de mais ninguém, mas encontram-se enraizadas em momento preciso da história.
Nele, sempre vislumbro a necessidade de ir além, mais fundo, de quebrar as quaisquer convenções. A aventura é o que vale no surf de Shaun Tomson.
Já Gerry Lopez, que foi para mim o surfista mais cool de todos os tempos, jamais será lembrado por ter sido desengonçado sobre uma prancha, ou por balançar os braços de modo errático enquanto buscava se por em posição para mais um tubo em Pipe.
A sua linha, a sua tranquilidade e, sobretudo, a sua recusa em distrair-se do fluxo imposto pela onda parecem-me até hoje coisa de outro mundo. Pergunto-me, contudo, se Lopez e seu surf minimalista poderiam surgir fora da vibração dos anos 70? As ondas que vi dele, em filmes, não sei bem por qual motivo me trazem à tona algo da busca de equilíbrio espiritual dos movimentos de contra-cultura.
Cá estamos, dois grandes surfistas, cujas formas de expressão, a despeito do critério de qualidade que possamos lhes atribuir, configuraram uma marca, um traço constitutivo de identidade frente aos outros e, na mesma toada, os torna representantes legítimos de seu tempo.
Não sei quanto a você, leitor, mas eu particularmente me interesso pelas identidades, pela capacidade que cada um possui de configurar um contorno próprio de sua alma. Se essa alma pertence a uma pessoa, ou se ela pertence a uma geração, para mim, isso não se põe como questão.
Evito, por isso, resvalar em julgamentos que, por mais motivos que possam haver para justificá-los, tendem a afirmar uma preferência em detrimento de uma recusa, quase sempre, ao meu ver, injusta. Afinal, comparações somente são aceitáveis quando é possível identificar, com clareza, aquilo que já trilhou o longo caminho rumo à particularização. Sem isso, não há contenda.
No campeonato de Bells Beach, nós fomos presenteados, a despeito da qualidade das ondas, com mais um confronto entre dois dos maiores estilistas do surf mundial. Mais velhos, ainda que em forma, Curren e Occy foram os protagonistas de uma destas disputas que, sob o manto da celebração, reeditava disputas ancestrais, travadas por longo tempo no circuito.
Ao vê-los, tive a impressão que Occy não teve sorte com o mar e com as ondas surfadas, como se aquele palco, naquelas condições, não fossem apropriadas para que ele trouxesse à tona, com toda força que lhe é característica, a materialização de nossa memória. Uma pena. Mas, pelo andar da carruagem, haverá outras oportunidades para que vejamos o Touro lembrar-nos quem, de fato, ele é. Visto a repercussão que a bateria “Clash of the Titans” teve no mundo do surf.
Se um não reviveu os seus dias mais felizes, do outro não se pode dizer a mesma coisa. Impressionou-me, sobretudo, a permanência do surf de Curren, de mesma matriz daquela que, em outros tempos, caracterizava a sua singular capacidade de fazer a onda.
Lá estava, no meio de uma centenas de surfistas e mais de duas décadas do seu auge como competidor profissional, Tom Curren para revelar-nos que ainda está apto a tornar legível a sua assinatura.
O fato é que Curren e Occy evocam algo de nosso passado, uma identificação com um tempo do qual fui testemunha e que, malgrado a distância, consolidou o que eu sou hoje. Por sermos herdeiros de nossas memórias, o surf cristalino do californiano ou a força do australiano trazem à luz, em quem é mais velho, um misto de legitimação de um passado, de desejo de dizer ao outro, mais jovem, que esse sim é o modelo de qualidade a ser imitado.
A tentação é enorme e Curren como Occy seriam merecedores dessa qualificação. Todavia, o envelhecimento, no caso o meu, traz consigo a certeza de que novos modelos surgiram, surgem e surgirão no decorrer da história.
Tal qual ocorreu com Curren, Occy, Tomson, Lopez e tantos mais, haverá de surgir novos estilistas, cujas formas expressão no mar, provocarão em nós, que vemos e gostamos do surf, a certeza de que alguém, no futuro próximo, pegará uma determinada onda e lhe imprimira uma assinatura única, tão exemplar que jamais seremos capazes de confundir-lhe a autoria.
Cada tempo possui uma forma de expressão, o que demarca o traço constitutivo de uma geração. Por vezes, esse processo é autoritário e as tendências se tornam mascaradoras da diversidade que, de fato, existia em cada época. Somente aqueles que são capazes de romper os limites impostos por esse achatamento, tornar-se-ão os reais representantes de seu tempo.
Os anos 80 não foram somente de Curren, mas também de Occy, Carroll, Elkerton. Não havia um estilo predominante, havia surfistas que se tornavam expressão e modelo de sua geração. A multiplicidade da vida reproduzia-se na arrebentação.
Afinal, há quem seja verdadeiramente catalisador do seu tempo e represente algo que, no limite, encontra-se na formação cultural da época que os forjou. Foi assim e assim será. Se, no tempo presente, isso já ocorre, ela também ocorrerá no tempo que está por vir. Afinal, quem não reconhece, num lance de olhar, uma onda surfada por Fanning.