Pode parecer impossível, mas, como ensina o taoismo, até o crowd tem seu lado positivo. Praia do Rosa, Imbituba. Foto: Ricardo Macario. |
Faz muito tempo que não escrevo. Quer dizer, faz muito tempo que não escrevo no Waves.
Tenho escrito muitos números e assinaturas em talões de cheque e canhotos de cartão de crédito, mas isso não me dá prazer – a menos que esteja comprando equipamento fotográfico ou passagem de avião.
Tenho escrito também algumas músicas, o que tem me dado muito prazer. Aliás, é justamente sobre prazer – sentimento de alegria, contentamento, satisfação – que eu gostaria de falar.
Apesar de ter sido batizado não sou muito religioso. Porém, acredito no taoismo, que nos ensina que a vida é feita de opostos.
Grajagan, Indonésia, quando ainda era um pico virgem. Foto: Rick Werneck. |
Para mim, assim como a sombra precisa da luz, o bem simplesmente não existe sem o mal – e vice-versa – e todo o universo pode ser resumido no desenho do Tao com seu yin e yang.
Dessa forma, quero falar de prazer começando com algo completamente desagradável e oposto: o crowd. Como o Tao nos ensina: tudo de ruim tem seu lado bom, portanto, quero falar do lado bom do crowd. Será possível?
Pra começar, vamos deixar uma coisa bem clara: crowd é inevitável! Encontrei Fernanda Guerra – uma das pioneiras do surfe feminino no Brasil, no início dos anos 60 – durante a final de um campeonato de equipes na Barra da Tijuca, no ano passado, e uma observação dela me pôs a pensar.
As ilhas Fiji são um dos destinos mais procurados por quem quer surfar na companhia somente dos amigos. Foto: Rick Werneck. |
Assim como o número de habitantes do planeta está aumentando, o número de surfistas também está e não vai parar. Portanto, se o crowd é inevitável, em vez de ficarmos eternamente reclamando, o melhor mesmo seria acharmos o que ele pode trazer de bom.
Pra começar, o crowd mantém vivo o sonho mais básico de qualquer surfista: viajar com os amigos para surfar ondas sem crowd.
A maioria dos surfistas, principalmente os assalariados, de carteira assinada, que só surfam nos fins de semana, reserva o seu mês de férias para fugir com os amigos para uma praia deserta com boas ondas. Pode ser a 100km de casa, na América Central ou do outro lado do mundo.
Imagino que muitos desses surfistas, se tivessem seu pico de origem só para eles e os amigos, pensariam duas vezes antes de gastarem seu suados salários em busca de outras ondas.
E não adianta dizer que as pessoas viajam apenas para surfar picos melhores porque mesmo os locais de picos clássicos como Kirra, Jeffrey’s Bay ou Pipeline podem ser encontrados no Pacífico Sul, Indonésia e outros cantos remotos do planeta, em busca de ondas vazias. Certo?
Quando novos picos são invadidos por mais surfistas em busca de ondas sem crowd, estes surfistas seguem à procura de outras ondas vazias, ampliando eternamente as fronteiras do surfe.
Nias, Grajagan e as ilhas Mentawai, por exemplo, foram descobertos não porque Uluwatu e Padang Padang estivessem piorando, mas simplesmente porque estavam crowdeando.
Se a procura fosse apenas por ondas perfeitas, todos seguiriam para o Hawaii ao final de cada ano, mas somente ondas boas não são suficientes. Nosso sonho é composto de ondas boas e vazias. Principalmente vazias.
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Há menos de 20 anos Fernando de Noronha era um lugar vazio, em que as ondas sobravam para os poucos e surtudos surfistas na ilha. Foto: Aleko / Venice. |
Em 1986, quando praticamente ninguém conhecia Fernando de Noronha, passei duas semanas de sonho lá com meu irmão e uns poucos amigos.
E pra quem foi recentemente e acha que Noronha é crowd, só posso dizer que naquela época surfávamos horas sem ninguém. Quando voltávamos no dia seguinte, havia apenas nossas pegadas na areia. A meia dúzia de surfistas locais da época preferia surfar a praia da Conceição.
O aumento do crowd em picos tradicionais fez com que lugares como o Timor fossem explorados e incorporados ao mapa mundi do surf. Foto: Rick Werneck. |
No passado, admito que já odiei crowd, como qualquer mortal, mas, hoje em dia, não me sinto nem no direto de ser contra, pois contribuí diretamente para o aumento de surfistas no line-up. O que me traz a outro aspecto positivo do crowd: o aspecto familiar.
Quando era solteiro, onde quer que eu chegasse com minha prancha, era mais um no pico. Anos mais tarde, casei-me com a Laila, que também surfa, e quando chegávamos na praia éramos dois a mais no pico.
Luke e Xande Werneck: surf em família é um dos efeitos positivos do crowd. Foto: Rick Werneck. |
Depois, tivemos dois filhos, Xande e Luke, que também surfam e, hoje em dia, quando saio de férias, somos quatro a mais dentro d’água.
O prazer, que poderia diminuir por surfar com pelo menos outras três pessoas, aumentou galaticamente, para usar um termo da moda. A felicidade em dividir uma onda com um filho é simplesmente indescritível.
Perguntem ao Picuruta, Fabinho Gouveia, João Mauricio, Ricardinho Toledo ou a qualquer outro surfista-pai-de-surfista, profissional ou não, que eles vão te responder: é a melhor coisa do mundo!
Entenderam como até o crowd pode ter seu lado positivo? Basta “olhar a vida do ponto de vista do horizonte”, diz o salgado poeta Pedro Cezar. Portanto, da próxima vez que você entrar no mar e estiver “lotado” de gente, não fique triste, pois aquele crowd vai te tirar do marasmo e levá-lo a buscar novas ondas vazias em algum outro lugar.
Enquanto não der para fazer a viagem dos sonhos, uma escapada rápida até Saquarema, Maresias, Matinhos ou Guarda do Embaú durante a semana já faz a nossa cabeça.
O negócio é não desperdiçar as energias com coisas sobre as quais não temos o poder de mudar. Se o crowd é inevitável, vamos aproveitar as coisas boas que ele pode nos trazer.
Quanto a surfar com os filhos, eu recomendo a todos. Rejuvenesce o espírito e faz muito bem para o coração.