– Câmbio Matuto. Chegamos. Abre o portão.
– Qual a senha?
Essa conversa se deu pelo WhatsApp, na minha chegada ao Rio de Janeiro, dias atrás na casa do Thiago Mariano. Lancei uma qualquer.
– Errada.
Tentei de novo. – Quem com ferro fere, com ferro será ferido.
– Errada. Senha nova: ovo cru. Vou liberar a entrada dessa vez porque vocês passaram o dia na estrada.
Como todo matuto, Thiago mora cercado de mato. Era noite, breu total. O portão abriu sem que ele aparecesse. Fiquei desconfiado que ele estivesse escondido armando alguma arapuca. Mas logo relaxei. Ele é daqueles que gosta de uma vingança servida a frio e eu acabara de chegar.
Quando vou ao Rio faço questão de ficar na casa do Thiago. Além do visual completo da restinga da Marambaia, ele é um dos longboarders mais completos que conheço. Como todo matuto, tem uma inteligência naturalmente desenvolvida na prática, com uma visão aprofundada das coisas e cheio das teorias interessantes. É músico dos bons e entende muito de mar, virou capitão aos 18 anos de idade e navega desde então.
Nossas sessões de surfe são muito intensas e sempre rola uma rivalidade divertida que se estende para fora d’água. A senha ovo cru, por exemplo, tem uma história por trás que ilustra bem essas situações.
Certa vez estávamos passando uma semana de surf em Ubatuba. A base da alimentação dele de manhã é amendoim, banana e ovo cozido. Acordei cedo e vi que numa panela tinha uns ovos que foram cozidos no dia anterior, ainda com casca. Substitui por ovos crus e só esperei que se servisse. Quando foi descascar, bateu o ovo na borda do prato e a lambança estava feita.
Antes mesmo de entrarmos na água, já tinha aberto o dia com um high score perfeito. Mas nunca se pode subestimar um matuto. No último dia da trip ele me pegou na mesma situação.
Voltando ao Rio, a primeira sessão de surf foi no Grumari. Marolas perfeitas no canto. Usei uma prancha dele, sem longarina. Era minha primeira vez com ela. Essa bateria o Thiago levou fácil. Apesar disso me encantei pela prancha e tentei convencê-lo a me passar ela. Nada feito.
Dia seguinte nos mandamos para Cabo Frio gravar na Alma Quilhas. Fomos recebidos pelo Douglas e Agnes Aguiar com um surf no Peró. Infelizmente o Paulo Camargo não registrou a session. Deu para perceber o potencial do pico. É uma onda forte. Apesar de pequenas, as séries eram constantes.
Douglas e Agnes sempre bem posicionados, enquanto eu e Thiago, mesmo surfando em valas distantes, travávamos nosso duelo particular. Diz ele que pegou dois tubos de grab. Apesar de saber o quanto ele é bom nessa técnica, logicamente coloquei em dúvida, ainda mais porque sabia que não haveria registros. Essa bateria ficou equilibrada, mas contando com a de Grumari, ele ainda liderava.
De noite aquele ritual de confraternização regado a fornadas de pizza e muitas risadas, com a presença do pai do Douglas, o legend local Joca Marola.
No dia seguinte saímos para filmar. O vento sudeste estragou o surf no Peró e saímos atrás de melhores opções. Em vão. Resolvemos focar no lifestyle e histórico da família. Uma navegada de canoa havaiana, já que o Joca é um dos precursores da canoagem havaiana na Região do Lagos.
Depois uma visita na Marola Surfboards. Foi lá que a Alma Quilhas começou, num pequeno balcão que devia ter pouco mais de 1 metro de comprimento. A Agnes se emocionou bastante quando me mostrou o espaço.
Joca foi grande parceiro do saudoso Tony, das lendárias pranchas Tony Surfboards. Emocionante escutar seus relatos sobre a história do Tony e a amizade entre eles. Tony viveu intensamente a cultura surf das antigas e ficou a margem do main stream do surf brasileiro, o que considero um grande desperdício de conteúdo para nossa cultura. Seu estilo de vida seria prato cheio para um documentário.
A loja / fábrica da Marola Surfboards também pode ser considerada um pequeno museu. Joca me mostrava algumas fotos na parede. Quando me estiquei para ver mais de perto, esbarrei numa coruja muito estilosa que servia de adereço no local. Fiquei em choque. A cabeça da coruja quebrou. Joca, Douglas e Agnes riram relaxados, mas eu continuei perplexo.
Olhei para o Thiago e já podia imaginar a satisfação dele em me ver naquela situação desconfortante. Terminamos o trampo e resolvemos filmar alguns visuais de Cabo Frio. Antes de sair, Joca nos presenteou com três lindas conchas, numa atitude digna de um grande Kahuna.
Estávamos em dois carros. Thiago e Paulo tiveram crise de gargalhadas. Thiago exclamou:
– Mermão, quebrar corujas dá azar!
– Teoria da maldição agora Matuto? Não fode. Amaldiçoar é jogo baixo.
– Agora que tu não ganha mais bateria nenhuma.
– Pelo contrário, percebeu que só a cabeça quebrou? Eu libertei o espírito da bichinha. Ela vai ser eternamente grata. Essa coruja vai renascer mais poderosa que um Fênix! Inclusive já nos presenteou com aquelas conchas. Até vocês estão sendo agraciados só por terem presenciado a libertação do espírito dela.
No caminho para praia das Conchas paramos numa linda baía de pedra, onde Douglas passou a infância e a Agnes confessou bons momentos do início do namoro deles. Andando pelo local encontrei uma linda pedra de quartzo rosa. Thiago disse:
– Sabe que o quartzo é uma pedra poderosa, super energética!
– Falei pra você! Presente da coruja!
Na Praia das Conchas avistamos duas bancadas de pedra querendo funcionar, mas o vento não deu trégua.
– A coruja tá falhando, disse o Matuto.
– É uma coruja, não Netuno.
Instantaneamente achei uma outra pedra perdida na areia. Só que essa era “do green”.
Agradeci a intenção, mas abri mão do presente, mesmo com alguém dizendo que recusar presente da coruja era arriscado.
Voltamos para a base da Alma Quilhas. Enquanto gravávamos na fábrica, o Joca preparava um churrasco. Além do farto almoço, saí de lá com minhas quilhas novas.
– Presente da coruja? – disse Thiago, irônico.
– Não! Do Douglas e da Agnes mesmo.
Ele olhou torto.
Continuei: – Quem com ferro fere, com ferro será ferido.
De noite já estávamos em Barra de Guaratiba. Comecei a receber ligações e emails com ótimas propostas de trabalho, tudo sobre o que eu mais gosto de fazer. Lembrei da coruja. No dia seguinte, pela internet, percebemos que a praia da Macumba estava clássica.
A sabedoria e generosidade do Matuto às vezes se perdem no interesse de surfar onde sabe que vai ter vantagem. Ele insistia na Marambaia, seu quintal. Compreensível até, afinal lá seríamos apenas nós dois na água. Mantive firme a decisão de irmos para a Macumba.
“Vamos em campo neutro”.
Realmente estava bom. Seis pés de onda e uma leve brisa terral. Precisávamos de conteúdo meu em vídeo para a Alma Quilhas. Mesmo assim o Thiago deveria estar no foco das lentes do Paulo e logo se mandou para água. Antes de ir também, expliquei meu posicionamento ao Paulo e apontei o Matuto’s Point, pico que o Thiago sempre fica, um pouco à direita do Rico Point, bem no caldeirão da praia, onde quebra uma direita bem volumosa.
Diversão garantida e consequentemente boas imagens. Estávamos ansiosos para ver o resultado da session. Esse tinha sido o último surf e definiria o campeão da trip. Sentimos que o Paulo estava travando. Esperando a boa vontade do cidadão, conversávamos sobre pranchas. E do nada, como se tivesse sido iluminado por “algum” espírito de luz, ele me ofertou para levar embora a prancha sem longarina que eu havia usado no primeiro dia.
– A coruja me deu até a prancha, mas nem ela parece capaz de fazer o Paulo liberar as imagens. Matuto, aperta ele. Porque se eu falar já viu… – comentei.
– E aí Paulo? Tem jeito de ver o surf?
Play! A primeira onda foi minha. Estranhei, já que o Thiago havia estreado a session. Segunda onda minha. A terceira e a quarta também. Enfim uma do Thiago, só o finalzinho dela. Mais algumas minhas. Percebi que eram as últimas ondas. Mais um rápido flash do Thiago. Minha saideira. Fim.
– É isso – disse Paulo.
Thiago meio decepcionado, mas querendo rir já imaginando o que eu estava pensando.
– E as ondas do Thiago?
– Porra vocês precisam colaborar comigo, ficar mais próximo um do outro. – resmungou Paulo.
Entrei pro quarto e fui dormir. Fiquei decepcionado de não ter o tira teima do último surf. No café da manha antes de pegar a estrada, aquela descontração sobre quem havia levado o título da trip.
Já no carro escuto o Thiago do portão:
– Se tivesse registro você ia ver quem ganhou.
– Pois é Matuto, as imagens não mentem.
– Tenho que concordar. Essa coruja é foda mesmo. Opera até milagre!
Paulo: – Ele acabou de virar a bateria!
– Faz um favor?
– Qual?
– Só fala quando avistar um radar.