Bife Queimado era dono de um sorriso largo. Tinha poucos dentes, mas uma fartura de alegria inspiradora para a molecada que vivia na aldeia ainda intocada do Leblon nos anos 80. Fez das ruas do bairro a sua sala, e o Posto 12 – a poucos metros do Pontão – seu quarto eventual. Bife, um negro esquálido de cabelo oxigenado, tinha vitiligo – daí o apelido.
Logo que apareceu no Leblon, ganhou a simpatia dos quase impúberes que desfilavam suas reluzentes cristais grafitti e hidrojets. Era um sujeito bom de trato, que sabia chegar sem incomodar os outros. Se tivesse passado pela educação formal teria feito muito dinheiro no comércio. Como não teve oportunidade, gastava suas tardes na praia. Não se atrevia a surfar por medo do mar, mas adorava ficar com a galera.
Bife era um mendigo diferente. Não se ligava tanto em dinheiro, mas tinha uma obsessão por shorts. Estava sempre com um diferente na praia, graças à sua amizade com a molecada da classe média lebloniana. A história de sua mania pela vestimenta logo se espalhou, e foi aí que a coisa pegou: vasculhavam armários para ter a honra de alimentar Bife com um short.
Eu fui um deles. Catei um da minha coleção de réplicas da dona Geninha e doei ao amigo. Um parêntese: como lá em casa ninguém tinha grana para comprar as marcas que bombavam na época – lembro de Company e Energia – o jeito era mandar fazer shorts na dona Geninha, uma costureira de mão cheia que achava divertida a moda dos surfistas.
Mas, para Bife, a origem da peça era indiferente. A pilha dele era ter uma coleção.
Num domingo de praia cheia, resolvi cair numa valinha com ondas de meio metro de Leste entre o Posto 12 e o Pontão. Lancei minha Breakaway na água e comecei a remar, quando, de repente, das profundezas do mar poluído do Leblon, surgiu um moleque desesperado. Ele tentou me dar uma gravata e começou a gritar, em pânico:
– Passa o short, passa o short!
Eu era um moleque magricela de 45 quilos e 13 anos, mas, por sorte, um pouco mais forte que ele. Consegui me desvencilhar, subi na prancha de volta e, quando a maré escorreu, entendi o desespero: o moleque estava completamente nu. E desesperado. Tinha tomado um caldo no quebra-coco e deixado o mar levar a sua sunga frouxa.
Sozinho, sem amigos naquela praia lotada, sua única saída era atacar surfistas que entrassem no mar à cata de ondas. Não deu certo comigo, e eu sabia que não daria certo com ninguém. Sem qualquer manha no mar e débil na natação, faltava pouco para o moleque se afogar.
Fui surfar e, quando o ódio aliviou e me permitiu pensar, saí da água. Dei de cara com o Bife, ali, estatelado nas escadas da praia, pegando um bronze, com sua inseparável e inestimável sacola de shorts. Nem acabei a história e seus olhos brilharam. Chegara a hora de dar uma utilidade nobre à sua coleção que a esta altura ultrapassava os 20 shorts.
Solene, ele escolheu a melhor peça de seu rico acervo de panos coloridos e levou para o moleque. Eu fui ao lado e permaneci mudo, espantado com os símbolos daquela história. O moleque saiu tímido da água e, de cabeça baixa, pediu desculpas. Depois, fugiu da praia correndo, talvez com medo de que, em vez da onda, alguém resolvesse lhe tirar novamente o short.
Bife, entre orgulhoso e recompensado, desabafou:
– É sempre bom retribuir o que fazem pela gente.
Tulio Brandão é colunista do site Waves, da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.