Leitura de Onda

O prazer de ver o melhor vencer

Jordy Smith, Hurley Pro Trestles 2016, Lowers, Califórnia (EUA).

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Em Trestles, Jordy Smith está numa lista muito restrita de foras-de-série. Foto: © WSL / Kirstin.

 

Faço parte da interminável lista de loucos que amam o surfe.

Dito isso, soltei rojões lá na rua para a vitória de Jordy Smith. Ele é da África do Sul? Dane-se. É o melhor carver do mundo, e venero o carving bem feito, aquele de borda realmente enterrada, na pressão, que o cara faz de maneira plena.  

Em Trestles, para os parâmetros que acredito serem válidos, Jordy está numa lista muito restrita de foras-de-série, muito bem acompanhado por Filipe Toledo, que perdeu para ele numa semifinal com a batida cara de final antecipada.

Cada um na defesa de sua especialidade.

Jordy venceu Filipe na estratégia. Pegou as melhores ondas da bateria e surfou o fino, enquanto o brasileiro não se preocupava tanto com a escolha, por saber que pontuaria alto em qualquer naco de parede afeita a um aéreo. Em Trestles, no confronto entre aéreos e o imortal carving, mais uma vez venceu a curva bem feita.

Tanner Gudauskas surfou bem, mas chegou mais longe que deveria, como já dito no libelo de dias atrás. Joel Parkinson estava um degrau abaixo dos semifinalistas – avançou numa explícita deferência a uma das mais belas linhas de surfe já desenhadas.

A vitória do sul-africano nos fez voltar a entender os critérios de Trestles.

Esqueçam um pouco a lista de itens que volta e meia pipoca na tela da transmissão ao vivo. Aquilo é um olhar geral, um genericão, que se aplica a todos os picos, mas sem os fundamentais pesos necessários a cada tipo de onda.

Trestles, especialmente nas etapas de elite (digo isso porque o QS lá tem variações sensíveis de critério), é um palco de surfe de linha, de arcos bem executados na parede da onda, de transição limpas entre as manobras e, claro, de potência e radicalidade, principalmente nas primeiras manobras e, caso seja possível, na finalização. Mas jamais houve, no charmoso pico de San Clemente, pelo menos nas etapa do WCT, o excessivo apego à modernidade, como ocorre em alguns outros picos.

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Filipe Toledo perdeu para Jordy numa semifinal com a batida cara de final antecipada. Foto: WSL / Rowland.

 
A World Surf League faz questão de manter viva a chama do surfe tradicional no pico. Se fizéssemos um gráfico de pesos para cada item do critério, eu me arriscaria a dizer que Trestles ainda está um ou dois graus pendente para o carving, em detrimento das manobras mais modernas.   

O histórico de vencedores naquela arena ajuda a explicar o olhar dos juízes. Desde 2004, subiram no topo do pódio Joel Parkinson, Kelly Slater (6x), Bede Durbidge, Taj Burrow, Mick Fanning (2x) e Jordy Smith (2x). Nenhum deles venceu com voos estratosféricos, muitos deles venceram abusando das curvas.

Ano passado, quando a modernidade já tinha impregnado o circuito mundial, Mick Fanning venceu na linha fina, no desenho impecável das manobras e nas transições sem defeitos. Foi um surfe sem arestas, by the book, que muita gente achou insosso, mas que acerta em cheio nos critérios do WCT para aquele pico.

Jordy, este ano, foi visivelmente mais potente, o que elimina totalmente o coro dos descontentes pós-modernos. Mas não abriu mão da linha em nenhuma onda. Sua postura relaxada, antes de cada bottom turn, é um emblema da incrível técnica, da confiança absurda com a qual executa os movimentos.

O sul-africano é um de meus surfistas preferidos justamente por conseguir combinar um vigoroso power com uma linha fina, comparável à dos melhores desenhistas de onda do mundo. O dia em que conseguir se destacar também em esquerdas tubulares – além de manter constância técnica ao longo do ano – entra com facilidade no seleto grupo de surfistas candidatos a muitos títulos mundiais.

Para confirmar definitivamente a tese do surfe clássico em San Clemente, o último goofy a vencer naquela onda foi Luke Egan, legítimo herdeiro da melhor escola australiana da boa linha, lá longe, em 2002. Não me estenderei no tema da derrota de Gabriel Medina, até porque gastei meu esôfago na última coluna, mas vale mencionar apenas que Gabriel Medina tem se dedicado, desde que entrou na elite, a apurar o surfe de backside – as curvas, as transições, a linha das manobras. Sua inspiração assumida sempre foi o refinado Owen Wright, que se recupera de uma grave concussão cerebral nesta temporada.

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Gabriel Medina, agora vice-líder, ainda tem plenas condições de conquistar a temporada de 2016. Foto: WSL / Rowland.

 
O garoto é tão preocupado com isso que, durante a etapa, usou uma prancha maior para apurar a linha na onda. Sua evolução é notável, e também por isso a derrota para Tanner Gudauskas, dono de um surfe radical mas cheio de arestas, provocou choque.

Enterrado o caso, Gabriel, agora vice-líder, ainda tem plenas condições de conquistar a temporada de 2016. Apostaria que ele converte sua fúria com as recentes derrotas em gana de vitória – deste jeito, sabemos, é difícil segurá-lo.   

Outro destaque digno de menção na etapa foi o bravo Alex Ribeiro, que saiu de longa hibernação para soltar seu surfe em ondas com as quais está plenamente adaptado. Acordou a tempo de sonhar com o reclassificação pelo WCT, sobretudo se conseguir manter o ritmo nas próximas duas etapas.

Agora temos França, Portugal e Havaí. Na corrida, além de John John Florence e Gabriel, temos um mordido e ainda vivo Matt Wilkinson, a chegada quase inesperada do craque Jordy Smith e, mais atrás, mas ainda vivo, ele, Kelly Slater. Ainda há chances matemáticas para outros, que dependeriam de uma arrancada fabulosa.

A torcida, como na etapa de Trestles, segue sendo apenas pela lucidez dos juízes. Agora, do meu lado, tem uma galera boa, como Barton Lynch, Cheyne Horan, Jake Paterson e provavelmente muitos de vocês, leitores.
 

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