Sempre gostei de dicionários. Tenho uma penca deles em casa – grandes, pequenos, de línguas, de sinônimos e antônimos, de etimologia e até de folclore. Os significados da palavra são como seu DNA, sua história, uma espécie de diário de todos os usos daquele verbete.
Palavras carregam, portanto, muito mais que letras ou fonemas.
“Onda”, por exemplo. No Houaiss de sinônimos, aparece com alguns significados que contam direitinho a sua história. 1. Abundância: excesso, exuberância, intensidade, profusão (onda de alegria). 2. Afluência: afluxo, fartura, jorro, profusão, quantidade, riqueza. 3. Alegria: deleite, diversão, divertimento, prazer (viajar é uma onda).
Alguns significados, eu desprezo. Volto a prestar atenção no sétimo. 7: Ímpeto: força, fúria, furor, poder, violência (onda progressista). 8. Mar: oceano. 9. Moda: costume, uso, voga. 10. Ondulação: sinuosidade, tremulação. 11. Vaga: vagalhão (as ondas do mar).
Num olhar estrito, só o último significado do dicionário faz referência direta à nossa onda. O legal é perceber que, em maior ou menor medida, a onda dos nossos sonhos se espalhou por todos os significados. É abundância, afluência, alegria, ímpeto, mar, ondulação e vaga.
No dicionário de folclore, do fera potiguar Câmara Cascudo, a gente percebe que os significados da cultura ocidental são apenas uma gota no oceano. “Mar” ganha a dimensão de um Deus cheio de vontades. Abaixo, alguns trechos do Cascudo:
“As águas do mar estão ligadas a inúmeras superstições, crenças, crendices e mitos, como Cobra-Grande, Cobra-Norato, Boiúna e outros.”
“O mar é um ser cheio de vontades, manias, gostos e simpatias rápidas ou de prolongação suspeita. Há regras invioláveis para quem viva sobre o seu dorso. Não se deve cantar em embarcação que se pode tocar na água com a mão depois de o sol desaparecer. Não se grita a não ser que haja claridade. Não se insulta o mar batendo-lhe com o calcanhar, joelho ou cotovelo.”
“O mar ama as cores azul, vermelho e branca, por isso é que elas estão em todos os navios. (…) O mar é sagrado. Por isso, muita gente costuma benzer-se ao entrar no mar. Nos momentos em que mal se ouve o rumor das vagas, o mar está cochilando.”
“Não se pragueja no mar, porque a praga pode voltar (choque de retorno). Quem fala do mar, morre nele. O mar não enriquece nem mata a fome. O mar, como Deus, consente, mas não para sempre.”
Um surfista não precisa seguir os ritos do folclore brasileiro, mas ao conhecê-los pode ver um mar diferente, com outras cores, outra história.
Não faltam, ainda, casos em que o dicionário perdeu para o tempo, para a roda-viva do mundo, que amplia significados. Prancha, no grande Aurélio, vira apenas uma “peça chata e alongada, originalmente feita de madeira e, atualmente, de material sintético, de feitio arredondado numa das extremidades e pontudo na outra, e que se destina à prática do surfe”.
Faltam inúmeras variáreis de bicos e rabetas, os novos modelos que reproduzem as alaias de madeira e ainda as variações de prancha que deslizam em outras superfícies, como lagoa, concreto, duna, neve, etc.
Mas, sobretudo, falta o que nunca estará lá, nas letras oficiais do Aurélio: a prancha como a porta de entrada de um estilo de vida, de um novo jeito de enxergar as coisas.
Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.