Jeff Hakman - Parte IV

O sobrevivente

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Jeff Hakman em Bocana, México. Foto: Arquivo Pessoal.

 

Jeff Hakman com 15 anos em Waimea, Hawaii. Foto: Arquivo Pessoal.

Quando Jeff respondeu um dos e-mails que enviei posteriormente com perguntas complementares ao nosso papo, achei engraçado ele ter qualificado as questões que coloquei como “A bit deep” (Um pouco profundas). Vindo do cara que viveu a vida que ele viveu é, no mínimo, curioso. Quem é mais “deep” que Jeff Hakman?

 

 

Fiquei imaginando se teria sido a mesma força interior que o fez remar com o pai para o outside de Waimea e Sunset, ainda menino de treze anos, e que também lhe deu a luz para sair fora da pegada da heroína outras tantas, substância que, segundo Keith Richards, guitarrista dos Rolling Stones – “é a mais sedutora das drogas” (Richards desmente ter trocado todo o sangue do corpo para poder livrar-se da “fada-princesa”, mas a lenda é mais forte que a verdade).

 

Viver no vértice do caos: a vida de Jeff Hakman teve uma trajetória tão preciosa quanto curiosamente invasiva para a psique coletiva, e que poderia ser descrita como “A Crônica do Homem Que Reiteradamente Enganou a Morte”. Dentro dos mares gigantes, dos pesadelos noturnos e diurnos, das salas de reuniões da época, absorvendo as alfinetadas dos executivos sabedores do seu vício, ou nos becos escuros lidando ele mesmo com as agulhas ao injetar um “speedball” – mix de cocaína com heroína – no braço já prejudicado, e assim ir derretendo lentamente pelas paredes como uma geleia fantasma, Jeff foi testando o universo. De testa mesmo.

 

Perguntei: “Qual a coisa mais difícil com a qual você teve que lidar na sua vida?” “A número um, a mais difícil, de longe, é o vício das drogas – longa, longa estrada”. A luta pessoal contra as drogas é apenas uma das maneiras mais explícitas da eterna escolha: o quanto queremos viver e o quanto queremos morrer?

 

Perguntado sobre uma cena engraçada na sua vida, Jeff lembrou que, mais recentemente, dirigiu trinta minutos para ir surfar a praia de Byron Bay, perto de Brisbane, na Austrália, com seu filho Ryan. Saiu do carro, colocou o calção, pegou a parafina e trancou o carro, só para descobrir que tinha esquecido a prancha…

 

Jeff acredita que “existem muitas pessoas surfando no planeta, mas não existem muitos surfistas genuínos na sua forma mais pura. Esses indivíduos, eu acredito, são únicos, e todos tem uma paixão em comum num nível muito alto”.

 

No dia seguinte ao nosso primeiro papo em casa, ele veio me visitar novamente, trazendo Bob McKnight, e entre uma e outra garfada no arroz integral com feijão preto e salada de couve-flor com brócolis especialmente preparados para nós, e que Jeff devorava com o gosto e o apetite de um náufrago, perguntei: “Como foi ter 13 anos e entrar em Waimea, Jeff?!”.”Eu estava cagando de medo”, ele disse. “Lembro que, lá fora, eu pensava que tinha que me centrar, respirar fundo para me acalmar”. Insisti: “Mas como a estrutura, não só psicológica, mas mesmo física de um garoto de 13 anos pôde suportar a pressão de uma série de Waimea entrando ou de um caldo daquelas proporções??”. Sem hesitação ele disse: “Meu pai, um waterman muito experiente, me falava – ´Vamos lá, Let´s go!, se você estiver se afogando eu te tiro´… só que, quando entrava a série, ele era o primeiro a ser varrido, e eu ficava cagando de medo ainda mais, boiando sozinho lá fora!”. (Risadas). “Tive que ter muito commitment para continuar surfando ali”, completou.

 

“Jeff, que característica mais te ajudou passar por tudo?”. “Ser humilde certamente ajuda. Ter tido alguns momentos muito intensos surfando as ondas grandes no Havaí quando eu tinha 15 anos em Waimea e Sunset te ajuda a cavar fundo e encontrar um monte de força interior. Alguns desses momentos construtores de caráter, quando eu era jovem, me ajudaram a encarar as adversidades mais tarde na vida”.

“Ou quem sabe uma escolha inconsciente, um desejo interior, atávico, de enfrentar desafios?”, ponderei.

“Isso pode definitivamente ser possível. Eu não tenho estado com um psiquiatra ultimamente, mas acredito que inconscientemente é possível gostar de desafios constantes, e mudança constante é emocionante! Isso pode explicar a instabilidade financeira, e definitivamente as constantes mudanças geográficas”.

 

O tempo escolhe quem vai poder olhar através dele. O espaço também.

 

Com o prato raspado, Jeff levantou-se e foi ao fogão se servir de outra rodada de arroz-feijão. Olhei para Bob, que, sorrindo, me confidenciou com uma curiosa mistura de cumplicidade e incontida admiração: “O cara é um sobrevivente”.

 

Em 1982, sua mulher na época, Cherie Radcliffe, no final da gravidez e já com as contrações, o acordou no meio da noite: “It´s time to go”. Jeff levou-a ao hospital e, em seguida, saiu para mais uma dose. Na volta viu o nascimento do seu filho Ryan através da cortina difusa de loucura da heroína.

 

Completamente duro, mas agora limpo, voltou a morar na Gold Coast da Austrália, a poucos passos do pico de Burleigh Heads, com Cherie e o bebê (sua filha Lea viria nove anos depois). Cherie exigiu que ele se mexesse e colocasse comida na mesa, portanto Jeff engoliu o orgulho e pediu emprego para o velho amigo Paul Nielsen, no seu surfshop. Após alguns longos segundos de silêncio e constrangimento ao telefone, Paul aceitou, e ele começou a trabalhar. Certo dia, Nat Young, o famoso surfista australiano que já havia competido contra Jeff, entrou na loja e não acreditou quando viu Hakman atrás do balcão. Alguns outros amigos do Havaí que passavam por lá, ao verem o lendário Mr. Sunset vendendo parafina, também não souberam o que dizer. No entanto, ele foi se reerguendo. Surfava quase todo dia, e nos intervalos do trabalho começou a dar aulas de surf para crianças. Jeff se lembra desse tempo como um dos mais felizes da sua vida.

 

Hoje ele me disse que: “A única coisa que realmente deixou um impacto em mim através da minha vida de montanha-russa, são os poucos instantes em que eu estou totalmente no presente, apenas sendo, apreciando o momento”.

 

O périplo de outro campeão mundial, esse bem mais recente, Andy Irons, na onda das drogas, teve o resultado exatamente oposto. Jeff foi fundo, e veio à tona, duas, três, dez vezes, Andy subiu precocemente direto para o andar de cima. Tomou um over-the-falls da vida. Não tem nada a ver com o surf, é a pessoa.

 

Não sei até que ponto o próprio Hakman está inteiramente consciente da sua própria capacidade, da sua resiliência; mas o fato é que agora está novamente reconstruído.

 

Mais do que ganhar campeonatos, fazer amigos, rodar o mundo, iniciar empresas de sucesso, redefinir o termo intensidade, comer arroz feijão com histórias, experimentar de tudo um muito, ser previsivelmente impulsivo ou surpreendentemente genial, regenerar-se parece ser a especialidade e o talento diferenciado de Jeff Hakman. Saber lidar de maneira instintiva com as profundezas abissais dos oceanos e da alma, e com os altos cumes da experiência humana.

Jeff, uma onda de cada vez, meu amigo. Aloha.

 

                                                      The End

 

Sidney Luiz Tenucci Jr, o Sidão, foi o criador da OP Ocean Pacific no Brasil. É colunista do site Waves há 10 anos. Viajou 55 países esbarrando em todo tipo de onda marcante e de figura carimbada. É autor dos livros Almaquatica (Ed. Terra Virgem), O Surfista Peregrino e Poentes de Amor (Ed. Decor). Lança em breve “Os Sete Chakras Geográficos”, pela Editora NeoAnima.

 

Leia mais

 

Parte I – Mr. Sunset

 

Parte II – Uma lenda viva

 

Parte III – A intensidade de um legend