O texto começa com alegria e serenidade, atributos dos maiores vencedores do Billabong Rio Pro. Deixemos a polêmica para o pé da página, onde desta vez ela merece estar.
Primeiro, os campeões. Começo com Jordy Smith, sul-africano que parece ter acordado de uma longa hibernação, iniciada quando chegou ao WCT com status de futuro campeão mundial e não correspondeu.
Por trás de seus novos resultados, há um nítido amadurecimento técnico e competitivo. É sintomático e preocupante, para seus adversários, que ele tenha pintado como o melhor surfista de Bells – mesmo tendo perdido – e que tenha vencido no Postinho diante de uma enorme variedade de condições de onda, até mesmo aquele meio metro da final.
Nunca é demais lembrar: Jordy tem 1,88 metros e 86 quilos.
O sul-africano consolidou seu surfe potente com um pacote de manobras sofisticadas, de alto valor: arcos que misturam carving com potência, manobras aéreas com rotação e altura e todos os caminhos que levam ao tubo.
E, como se não bastasse todo o arsenal bélico, Jordy decidiu ser feliz. Sorri – isso mesmo, sorri – e inventa comemorações a cada onda boa surfada. Quantos pontos valem a felicidade?
Adriano de Souza, o nosso surfista número 1, está em grande forma. A liderança obtida com o vice-campeonato no Rio tem um símbolo distinto da alcançada dois anos atrás. Desta vez, é sustentada em maturidade, em perseverança, em apuro técnico. Não há um velho crítico do mundo saxão que não tenha se rendido a essa transformação – que o diga Nick Carroll.
Ele sabe disso, mas só seguiu em frente por não se abater com os velhos ataques. Num ano em que tudo parecia conspirar contra o sucesso, Adriano encontrou um patrocínio que carrega seu espírito patriótico, pisou em pranchas mágicas, refinou magistralmente a sua cavada e atingiu um nível de maturidade competitiva quase inalcançável pelos comuns.
É mais ou menos como aqueles estados orientais de transcendência em que o cara mantém alta intensidade e foco total, mas exala serenidade. Isso é destruidor para os adversários.
Não se enganem com a aparente calma: Adriano arrebentou no Rio de Janeiro. Apenas ele e o havaiano Sebastian Zietz venceram os dois rounds sem perdedores, com a diferença de que o brasileiro caminhou até a final, com um agora renovado jogo de aéreos.
Já que falamos de voos, Gabriel Medina era o cara. Chegou antes de todo mundo, treinou abnegadamente em todas as condições possíveis. Nos treinos, era o melhor. No evento, fez grandes médias em ondas diversas, provando sua fantástica capacidade de adaptação.
Depois de abrir o dia decisivo com uma nota 10, quando despachou Ace Buchan, perdeu para Adriano, que competia feito um leão, mas aparentava a calma de um monge budista.
A derrota surpreendeu muita gente, sobretudo pelas médias anteriores de ambos os surfistas, mas a recuperação de Medina, com o terceiro lugar no Rio, é um indicador importante do que está por vir na temporada. Aguardem um garoto com faca nos dentes, disposto a se jogar nas maiores bombas para vencer nos canudos de Fiji – ano passado, ele bateu na trave.
Filipe Toledo entendeu rapidamente como é bom jogar sem pressão. Enquanto seus pares mais velhos entram na água com metas e compromissos a cumprir, além do peso de maus resultados em anos anteriores, o garoto só quer saber de brincar de surfe. E, como dizia um radialista aqui do Rio, é disso que o povo gosta. O povo e os juízes.
Mal entrou no trem do WCT, ele redefiniu a brincadeira dos aéreos de rotação, girando, em apenas uma onda, para os dois lados. E tome nota 10.
Tudo corria bem após o evento, com boa repercussão na imprensa, até ser publicada uma reportagem assinada pelo jornalista americano Matt Pruett no antes respeitado Portal Surfline. Recebi diversos e-mails indignados sobre o conteúdo, mas só fui ler o texto, que foi retirado do ar, bem mais tarde, em transcrições presentes em críticas ao autor.
Chamou minha atenção como os argumentos de Pruett pareciam fora de medida, distantes do mundo real, daquilo que efetivamente tinha acontecido na praia. A começar porque ele sequer acerta o nome praia. Depois, usa dois eventos banais ocorridos com Medina para crucificá-lo e, por tabela, para estereotipar burramente o povo brasileiro.
Nas quartas entre Medina e Ace Buchan, por uma falha de ASP, a sinalização da prioridade estava confusa. Por algum motivo, o brasileiro tinha a convicção de que detinha a posse da próxima onda. Diante disso, exerceu de modo legal, legítimo e absolutamente esperado num ambiente competitivo o direito de impedir que Ace finalizasse a sua onda.
Nos segundos finais da semi contra Adriano, Medina se envolveu numa disputa mais acirrada de onda para forçar a troca de prioridade, mas nada que qualquer surfista de competição do mundo já não tenha feito inúmeras vezes. Isso é tão comum que até CJ, o bonzinho da praça, já derrotou Medina usando o expediente.
Pensei em abrir a coluna com isso, mas decididamente não vale a pena dar moral para um texto tão pobre. Como diz um amigo, Pruett e alguns outros gatos pingados da imprensa reforçam um preconceito às avessas, de que o americano médio é ignorante, não tem conhecimento geral e é incapaz de entender outra cultura como legítima.
Verdades generalistas são perigosas. Pruett não pode representar um povo, mas podemos condená-lo por negar outras culturas, por deflagrar a bandeira clássica do preconceito.
O texto dispensa resposta também porque Tetsuhiko Endo, jornalista com bons textos e posições firmes, assinou um artigo redondo sobre o tema no site The Inertia. Incomodou tanto que o próprio Pruett tentou uma réplica desastrosa no espaço de comentários do site.
Que venha Fiji, com brasileiros na luta de sempre.
Tulio Brandão é jornalista.