Marcello Árias. Foto: Rafael Sobral. |
Ligas de carbono ultraleves e resistentes estão nas bicicletas de competição. O solado das sapatilhas dos melhores velocistas é feito utilizando-se os mesmos túneis de vento onde se testa a aerodinâmica de aviões ou carros da Fórmula-1.
Fibras sintéticas, trançadas a partir de um único fio com o auxílio de sofisticados programas de computação, são cada vez mais comuns nas roupas dos nadadores. As camisas das principais seleções de futebol são desenvolvidas nos mesmos laboratórios que criaram revolucionários coletes a prova de bala.
Nesse texto publicado recentemente pelo jornal de Santos A Tribuna, a dupla Marcello Arias e Marcus Fernandes comenta os avanços da tecnologia para o surfe.
2 mil anos
Tudo isso é apenas uma parte da Ciência aplicada no esporte, que se dedica aos acessórios desses competidores. Numa outra ponta dessa realidade, está a medicina esportiva.
O objetivo de ambas até que se confunde: oferecer ao atleta um melhor desempenho. Porém, na medicina esportiva a busca do mais rápido, do mais forte e do mais ágil competidor tem os seus primórdios há mais de 2 mil anos.
Nos Jogos Olímpicos da Grécia antiga, por volta de 300 a.C., os corredores de longa distância usavam, por exemplo, uma espécie de chá feito com plantas que tinham como principal produto ativo, um alucinógeno extraído de cogumelos.
Mais tarde, principalmente a partir da década de 1930, essa artimanha passaria a ser conhecida mundialmente como doping, algo que o mestre Zizinho (Flamengo, São Paulo e Seleção Brasileira entre outros) assim classificou: “Doping é uma coisa que a gente toma aos 40, para se sentir como se tivesse 20 e depois ter um cansaço de quem tem 80”.
Na verdade, o termo foi parar nos dicionários em 1889, na Inglaterra, significando uma mistura de narcóticos utilizada em cavalos puro-sangue.
Explosão
Ou ainda, permitir a formulação de técnicas específicas de treinamento para cada modalidade, levando em conta os esforços repetitivos que diferem um tenista de um nadador.
Isso significa menos contusões, mais explosão muscular, melhor rendimento cardiorrespiratório enfim, a busca de um super atleta, o alcance dos limites do ser humano.
Porém, ao longo dessa história, muitos esportes seguiram suas trajetórias ignorando parte dessa revolução. O surfe, por exemplo, foi um deles.
O chamado ‘esporte dos reis’ evoluiu muito. As pranchas, por exemplo, que há cerca de 60 anos eram feitas de madeira e pesavam até 100 quilos, hoje são levíssimas, com no máximo dois quilos.
Mas o trabalho da ciência sobre o surfista, mais especificamente da medicina esportiva, só agora começa a ganhar destaque, mesmo sendo uma modalidade praticada por quase 20 milhões de pessoas no mundo, cerca de 2 milhões de adeptos só no Brasil.
##Pioneiros
E esse pioneirismo pertence, em parte, a uma dupla de professores de educação física que coordena, aqui em Santos, a Universidade da Prancha (Unipran) – um dos únicos, se não o único núcleo de ensino, pesquisa e extensão dos esportes com prancha do mundo, desenvolvido no Centro Universitário Monte Serrat (Unimonte).
Marcello Árias e Flávio Ascânio acabam de participar, pela sexta vez, do maior congresso mundial de medicina esportiva, nos Estados Unidos – eventos nos quais os trabalhos só são aceitos após passarem pelo crivo de outros cientistas.
Lá, duas das três únicas pesquisas voltadas para o surfe, em meio a mais de 2 mil estudos apresentados por especialistas de todo o Planeta, foram feitas por Árias e Ascânio.
Nesta edição, você vai saber um pouco sobre as inéditas e curiosas descobertas que a dupla vem fazendo, conhecer a história desse esporte e dos santistas que na década de 1930 introduziram a modalidade no País.
Vai conhecer ainda os caminhos que estão levando o surfe a se tornar um curriculo obrigatório em muitas universidades da região, e se surpreender com o lado não-ecológico de um esporte que nasceu justamente da perfeita interação do ser humano com a natureza.
A queda dos mitos
A ciência mostra que o surfista é muito mais do que aquele sujeito de ombros largos e pernas finas
Lugar comum, clichê, chavão. É dessa forma que os dicionários explicam o termo ‘estereótipo’. Estereotipar uma pessoa é, portanto, aplicar ao seu comportamento um rótulo que a padronize e a diferencie das demais.
E a ‘tribo’ dos surfistas convive, ao longo das últimas décadas, com todo tipo de rótulos, dos mais pejorativos aos mais nobres.
Na década de 1970, só para não irmos mais longe no tempo, era raro um pai presentear o filho com uma prancha de surfe. Hoje, por outro lado, várias escolas adotam e prestigiam o esporte.
Essa mudança se deu, em grande parte, por meio dos próprios surfistas, que foram, pouco a pouco, derrubando muitos conceitos maldosos que caracterizavam os amantes das ondas. Agora, um trabalho pioneiro no Brasil, e que começa a receber reconhecimento mundial, está revelando uma outra realidade do surfe.
Há cerca de um mês, Marcello Árias e Flávio Ascânio, professores de educação física e coordenadores da Unipran (Universidade da Prancha), núcleo de ensino, pesquisa e extensão dos esportes com prancha, do Centro Universitário Monte Serrat (Unimonte), participaram do 50º Congresso Americano de Medicina Esportiva – o maior evento da área no mundo, realizado na Califórnia (EUA).
Pela sexta vez consecutiva, eles tiveram seus trabalhos pré-aprovados pela organização, que selecionou 2.264 pesquisas sobre medicina esportiva. Dessas, três enfocavam o surfe, sendo duas delas de autoria de Árias e Ascânio.
Confira algumas dessas inéditas conclusões da dupla
1) A remada
A parte mais benéfica do surfe para o corpo humano é justamente algo que os praticantes não gostam muito: a remada. Sem perceber, alguns surfistas passam seis, sete horas no mar.
“Num bom dia de surfe, eles chegam a percorrer 20 quilômetros”, diz Árias. Essa prática, segundo as pesquisas da Unipran, faz com que a capacidade cardio-respiratória de um surfista fique abaixo apenas dos esquiadores olímpicos de cross country, sendo superior aos dos canoístas e dos nadadores universitários.
##2) O desequilíbrio
Essa mesma remada que faz do surfista uma espécie de super atleta, pode também causar problemas. Árias e Ascânio concluíram que o ato repetitivo de remar, quando a pessoa está deitada sobre a prancha, fortalece certos músculos frontais do peito, porém, não exige o mesmo esforço dos seus correspondentes nas costas.
Esse desequilíbrio ocorre em outros esportes, como o Tênis, onde um dos braços é mais forçado, exigindo treinos que evitem, por exemplo, lesões. “Por isso, nós desenvolvemos exercícios específicos para o surfe”, diz Ascânio.
3) O equilíbrio
Usando um dinamômetro isocinético computadorizado (aparelho que avalia a extensão e flexão das articulações), esses dois especialistas em fisiologia perceberam que
diferente de outros esportes, o surfe promove um certo equilíbrio entre os músculos anteriores e posteriores das coxas.
No futebol, o ato de chutar e de correr tende a provocar, por exemplo, as constantes distensões. Certos músculos frontais da coxa são mais exigidos do que os da parte de trás, que acabam mais sujeitos às contusões.
No surfe, por outro lado, há um equilíbrio entre esse jogo de tensões musculares, pois é uma atividade na qual o praticante tem que dosar a distribuição de peso para garantir um bom equilíbrio.
4) As pernas finas
Atletas em geral sofrem com eventuais mudanças corporais dos treinamentos. Parte disso tem razões estéticas. Há meninas que temem a natação por achar que ficarão com ombros largos.
No caso dos surfistas, essa realidade acabou criando a figura do sujeito de costas largas e pernas finas. “Isso não é verdade”, avisa Ascânio. Testes aplicados pela dupla comprovaram a prática do surfe oferece ganho de força e explosão muscular para as pernas.
Porém, quando um surfista resolve encarar o desafio de uma onda de 35 minutos de duração, ao longo de 12 km, sem pausas, as coisas mudam. Para bater esse recorde, o santista Picuruta Salazar precisou mais do que viajar para a foz do Araguari, no Amapá, quando esse rio se encontra com o Oceano Atlântico e ocorre a Pororoca.
Picuruta, que como todo surfista, normalmente passa poucos segundos sobre a prancha, precisou fazer um condicionamento físico especial para os membros inferiores.
Certas coisas valem a pena esperar
Em 1831, um missionário que foi pregar no Hawaii, descreveu a seguinte cena: “Quando as ondas chegavam, os vilarejos ficavam completamente vazios. Tarefas do cotidiano eram totalmente esquecidas, enquanto toda a comunidade, homens, mulheres e crianças passavam o dia a divertir-se nas ondas”.
A entrada do surfe no mundo acadêmico foi como a chegada de uma enorme e bela sequência de ondas. Demorou, mas hoje já é uma realidade. Atualmente, só na Baixada Santista, quatro universidades (Unimonte, Unimes, Unaerp-Guarujá e Unisanta) oferecem o surfe em sua grade curricular.
Esse processo começou no início dos anos de 1990, quando uma escola particular, Patro Homa, aceitou inserir o surfe nas aulas de educação física”.
Em julho de 91, surgiria em Santos a primeira escola pública de surfe. Em 95, o esporte passou a ser um curso de extensão (à parte) oferecido por uma das faculdades de Educação Física da região.
Em 99, o grande salto: transformou-se numa disciplina obrigatória numa dessas universidades. Um ano depois, surge na cidade o primeiro núcleo universitário de esportes praticados com prancha no mundo, a Universidade da Prancha (Unipran).
O nosso objetivo é estabelecer um perfil científico para essas modalidades. Porém, sem jamais perder a sua essência lúdica e recreativa. Conforme comprovam as pesquisas sobre a história dessa arte, ela teria surgido da enorme capacidade de navegação dos polinésios, onde o surfe era praticado principalmente pelas crianças.
##O esporte dos reis
Príncipes, colonizadores e missionários, a história dos he’e nalus
O surfe é atualmente um dos esportes que mais cresce no mundo. Algumas pesquisas apontam para 18 milhões o número de praticantes espalhados pelo nosso planeta água.
Aqui no Brasil, estima-se que dois milhões de pessoas divirtam-se sobre as ondas. Ninguém sabe ao certo onde o surfe se originou, se o entendermos em sua mais pura e singela concepção, ou seja, o ato de deslizar sobre a arrebentação.
Entretanto, o povo que habita a região do oceano pacífico conhecida como Polinésia, foi quem elevou o surfe ao status de cultura.
Religião
Há mais de mil anos, os polinésios (havaianos, taitianos, neozelandeses entre outros) elegeram o surfe como uma das mais importantes formas de expressão em suas respectivas sociedades, sendo que o povo havaiano, em especial, concedeu a este esporte o privilégio de ser conhecido como esporte dos reis, uma vez que até mesmo os reis do antigo Hawaii o praticavam com esmero.
Menções ao surfe foram encontradas em inúmeros aspectos da vida dos havaianos, e podem ser apreciadas nos poemas, nas canções, na vida religiosa, política e social desse povo encantador.
Mas não pense que naquela época as pranchas eram como as de hoje. Surfava-se com enormes tábuas de madeira sólida que chegavam a medir até sete metros de altura e pesar mais de cem quilos!
Ganância
Porém, em 1777, com a chegada do navegador britânico James Cook, as coisas começaram a mudar. Colonizadores e missionários europeus opuseram-se a toda cultura polinésia e tentaram impor seus costumes aos ilhéus. As práticas religiosas, políticas e esportivas de outrora sucumbiram à ganância do homem branco, e junto com elas, a arte de deslizar sobre as ondas.
Foi somente no início do século 20 que um havaiano de sangue nobre, conhecido como Duke Paoa Kahanamoku, ressuscitou a arte do surfe, divulgando-a pelo mundo afora. Além de surfista, Duke era um exímio nadador, e chegou a ser campeão olímpico nos jogos da Suécia (1912), Bélgica (1920) e França (1924).
Transcendente
Esses fatos tornaram este pequeno príncipe havaiano conhecido como ‘o pai do surfe moderno’. De lá para cá, muita coisa aconteceu. Novos materiais impulsionaram o desenvolvimento tecnológico do esporte.
Um novo conceito de organização concedeu ao surfe um caráter profissional, e atualmente, toda a cultura relacionada a ele (história, materiais, ecologia, biologia marinha, oceanografia, competições, etc) é ensinada até mesmo em universidades.
Entretanto, sua essência jamais foi esquecida. Não importa se falamos do surfe primitivo ou do surfe moderno, do surfe amador ou do profissional, de um menino surfista ou de um vovô radical.
A emoção de surfar as ondas do oceano é imutável, permanente e transcendente. E seu foco é, foi, e para sempre será direcionado ao aspecto mais lúdico do ser humano: a obtenção da diversão, do sorriso e do companheirismo descompromissado. Então, o que você está esperando para pegar a sua onda?
A poesia santista
No capítulo a ‘História do Surfe no Brasil’, Marcello Árias se pergunta sobre quem realmente teria sido o nosso primeiro surfista. “Quem de fato saberá?”, inquire o autor sobre as versões existentes.
Para o autor, o pioneirismo teria ocorrido nas proximidades do canal 3, na Santos da década de 1930. A dúvida seria se essa primazia pertence a Thomas Rittscher, entre 1934 e 1936 ou aos amigos Osmar Gonçalves, Silvio Malzoni, João Roberto Suplicy Haffers.
##Os três últimos fizeram suas pranchas de um modelo publicado numa revista norte-americana, e caíram no mar em 1938, “divertindo-se e, segundo eles mesmos, impressionando a mulherada”.
Entretanto, Marcello diz que todo esse pioneirismo “não chegou a produzir uma cultura surfe”, que como modelo de vida nasceu no Rio de Janeiro nos anos de 1950. O episódio ocorrido em Santos, segundo o autor, passa para a história do esporte no Brasil “como um fato poético isolado”, os primeiros He’e nalus (surfistas, no dialeto polinésio) a domarem nossas ondas.
As pranchas do futuro
Os pioneiros Osmar, Silvio, João Roberto e Thomas talvez jamais imaginassem que suas pranchas evoluiriam tanto de 1930 até os dias de hoje. Daquelas feitas de madeira, pesando algo como 100 quilos, elas hoje são levíssimas, agregam tecnologias de ponta, são feitas com material sintético, resinas e fibras em sua grande maioria oriundas do petróleo.
Para se ter uma idéia, de um bloco de matéria prima, poliuretano, até a prancha final, de 30% a 40%, dependendo do modelo, é resíduo, lixo. Preocupado com essa realidade, o arquiteto com especialização em controle de poluição e saneamento básico, José Roberto Fernandes, começou a pesquisar a reciclagem desse material.
Tóxicos
Segundo Fernandes, que surfa desde o início da década de 1970, esses resíduos são tóxicos, e devem seguir rígidos padrões para seu descarte correto, sem danos ao meio ambiente. Pensando em difundir esses conceitos junto aos fabricantes brasileiros, ele desenvolveu um curso que a Unipran deve oferecer em breve: Controle da Poluição em Fábricas de Pranchas de Surfe. É o primeiro esforço científico dessa natureza feita no Brasil, e quem sabe no mundo.
“Mesmo fazendo contato com entidades estrangeiras, como a associação da indústria de pranchas da Califórnia, não descobri uma pesquisa similar”, diz Fernandes
Energia
Seu trabalho está baseado na análise de sete fábricas de pranchas do litoral paulista. Nelas, ele percebeu que muitos já buscam alternativas e soluções para esse descarte. “Mas, por falta de orientação técnica, eles ainda estão longe do ideal”, avalia o arquiteto. Entre essas saídas, “que passam obrigatoriamente pela união do setor”,
Fernandes diz que é possível, por exemplo, o reaproveitamento desses resíduos como matéria prima para gerar energia em caldeiras.
E o pesquisador vai além. No futuro, por exemplo, áreas florestais podem ser manejadas para exploração da madeira balsa, uma fibra natural que hoje é empregada na construção de pranchas para colecionadores – algumas atingem preços na casa dos US$ 2,5 mil (uma prancha ‘comum’ custa cerca de R$ 800).
Ecológicas
Muito utilizada em aeromodelos, ela poderia ser a base para ‘pranchas ecológicas’, pois diminuiria o uso das resinas oriundas dos hidrocarbonetos, uma substância não renovável.
“Somos uma geração que nasceu com a indústria do plástico. Precisamos buscar novas alternativas, provocar desafios. E a saída para isso é unir esforços”, diz Fernandes.
Contato com Marcus Fernandes pelo e-mail – marcuscom@uol.com.br . Fernandes é editor do caderno Ciência e Meio-Ambiente do jornal de Santos A Tribuna. Marcello Árias é autor do livro ‘Surf Gênese – A história da evolução do Surf’, que em breve será lançado pela Cosmos Editora (www.almasurf.com.br). É coordenador da Universidade da Prancha (Unipran) – Núcleo de ensino, pesquisa e extensão dos esportes com prancha do Centro Universitário Monte Serrat – Unimonte.
Prof.Ms. Marcello Árias
Coordenador da UNIPRAN – Universidade da Prancha
Professor do Centro Universitário Monte Serrat – UNIMONTE/Santos
http://www.unimonte.br/site/unipran/