Soul surf

O Surfista Peregrino

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Apesar de ser nosso colaborador, o Surfista Peregrino preza sua privacidade e é discreto por natureza. Como não temos uma foto, registro ou descrição precisa das características físicas, esta figura desenhada a bico-de-pena é apenas uma das versões de como pode ser o nosso personagem. Quem tiver notícias ou encontrá-lo por acaso em algum pico isolado do mundo, por favor nos informe, mande dados, desenhos ou fotos. Obrigado, Sidão. Arte: Nei.
Nosso personagem viaja há algumas décadas pelo mundo atrás das ondas perfeitas e da perfeição em si mesmo, ou o que alguns chamam “Deus”. Não acredita na morte do sonho, pois sabe que seria a morte da Vida.

 

Vai leve, com apenas uma mochila suprida de algumas peças de roupa, um discman e pequenos utensílios nas costas. Um violão numa mão e uma única prancha de surf na outra completam as posses.

 

Não gosta de dizer a sua origem, pois se considera um cidadão do mundo, ou “do universo”, como gosta de frisar. Mesmo a sua etnia permanece obscura, já que a pele tem um tom indefinível por baixo do bronzeado permanente.

 

As costas e o tronco como um todo são proporcionalmente mais largos e fortes do que as pernas, devido à prática de anos remando através das arrebentações das praias e reefs dos cinco continentes.

 

Costuma caminhar bastante entre uma e outra carona a fim de conhecer os moradores locais, evitando transportes públicos ou “ladrões de saúde”, que é como se refere aos modernos facilitadores de locomoção que lhe roubam a oportunidade de andar.

 

Considera esta atividade básica essencial para o seu bem-estar físico e mental, e lamenta silenciosamente que este hábito atávico da raça humana tenha se perdido na chamada vida moderna, com os motores roubando a função das pernas.

 

Apesar de ser do tipo quieto faz muitos amigos por onde passa, guardando-os no coração e na memória assim que parte. Não se escraviza na ilusão do apego, pois percebe a natureza dos momentos: únicos, jamais se repetindo.

 

Fez da procura a sua missão. Do movimento, dentro e fora d’água, sua crença. Sente a evolução do seu espírito em cada inspiração. E ao expirar avança no entendimento. Para quem imaginava que não haveria mais lugar para uma alma errante, limpa e silenciosamente inquisitiva, ele traz esperança.

 

Suas aventuras ao redor do globo são a materialização de um pensamento vívido e constante: a autodescoberta através da procura de si mesmo nas ondas. Seu instrumento de luz, a prancha.

 

Seu território, o mar. O chão que passa por baixo de seus passos pode ser as planícies da China Continental ou as montanhas e vales do Brasil. Não importa. Ele sempre chega ao mar.

 

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Primeiro Episódio

 

Indonésia faz parte da peregrinação de nosso amigo. Foto: Sebastian Imizcoz.
Dissertações sobre o mercado brasileiro de surfwear e suas vestes azuis; ou de como o Surfista Peregrino também passa pelas cidades a fim de compreender a totalidade.


“Estou elaborando na minha mente o que tenho ouvido nos últimos tempos. Como peregrino, ouço muita coisa em muitos lugares, embora não pertença a nenhum. Nas praias, nas festas, nas feiras de surf-wear, nas viagens, no telefone com os amigos. O tal mercado de surf-wear brasileiro, concluo, foi construído em cima de uma emoção.

 

Não foi um plano de marketing bem armado, nem fruto de um cérebro privilegiado que vislumbrou milhões de zumbis sedentos de consumo. Mas que emoção é esta? Onde se localiza?

 

O campeonato Legends reúne em Maresias a elite dos soul surfers brasileiros, cada um com sua porção de peregrino na carreira. Foto: Rafael Sobral.
As matérias resgatando a história do surf são um belo sintoma. Leio-as entre uma viagem de ônibus e a espera da salada de alface e abacate num bangalô detonado nas florestas da Indonésia. O campeonato Legends, no Brasil, outra.

 

A busca do equilíbrio e a volta ao soul surf brotando nas areias anexas ou distantes, outra. Mesmo alguns moleques recém integrados à irmandade do surf trazem aquele brilho nos olhos. Vejo mais uma vez que a Percepção não tem idade.

 

Há uma verdade inserida no nosso DNA que estava represada por tempo demais. Sinto seu cheiro ressurgindo nas estradas. Está reaparecendo aqui e ali, por pura necessidade.

Uma força que não se pode deter porque não se sabe onde se localiza.

 

Steven passa por dentro em Nias. Tubos ocos em Nias fazem parte da vida de quem peregrina atrás de experiências únicas. Foto: Sebastian Imizcoz.
Historicamente, posso dizer que uma alma forte que estava pairando pela estratosfera do planeta, mais ou menos nos anos 60/70, baixou no nosso litoral. Foi o princípio. Encarnou num corpo chamado “galera nacional”, ou “utopia possível” (contradição em termos – mas não vamos nos aprisionar nas correntes da coerência…).

 

Traduziu-se também numa emoção chamada surf. Os incautos rapazes que adquiriram o vírus planetário/aquático exibiam estranhos sintomas. Eu sei, fui um deles. Começaram a enxergar universos paralelos aos dos seus pais e amigos. Viam água onde antes só existia aridez.

 

Enxergavam movimento e ondulações invisíveis onde antes só havia um mar imenso e tranqüilo. Viam cores onde o cinza dominava. Temerariamente, estes caras resolveram edificar uma vida em cima destas visões. Na ótica de seus pais, era total loucura: como ter algo sólido arquitetado sobre bases tão etéreas?

 

Viajaram pelo mundo à procura de respostas e só encontraram mais perguntas. Ou até melhor, encontraram uma luz: não havia resposta. O caminho era a destino. Cada segundo que viviam aquela vida estava pleno e não necessitava aditivos.

 

Surpreendente. Ou nem tanto. Pois intuíam previamente o que os seus instintos diziam, pulsando incessantemente anos antes: viajar ao encontro das ondas, das culturas, dos Homens de todas as raças e daquele “eu” escondido nas frestas dos corais e nas cores dos arco-íris era, sem dúvida, uma missão significativa.

 

Muitos deles ficaram pelas trilhas do tempo nas bancadas alienígenas, ou transformaram-se em pássaros e peixes. Alguns voltaram. E com um sentimento cheio de Paz, recheado de noções do que é a Vida Real, começaram a formar um mapa de uma nova Existência aqui na terrinha.

 

Eu sempre fui um solitário. O privilégio de viajar sozinho e ficar meses sem proferir palavra, posso lhes afirmar, ajudava-me a concentrar enorme energia benéfica, que clarificava as idéias e a compreensão da existência.

 

Neste meio tempo aqueles rapazes, entre uma incursão e outra, costuravam roupas de pano de cortina, puxavam cordinhas de borracha nas mãos calejadas, assavam e derretiam parafina na panela da vovó, e ainda tentavam, por todos os meios, formatar

aquele sonho da estrada em forma de cidade.

 

Alguns conseguiram, outros enlouqueceram. Os que persistiram e tinham um olho para a capacitação da materialidade do espírito, vingaram na sociedade e foram convidados a adentrar as casas das namoradas, antes vetadas a “hippies e vagabundos”. Alguns recusaram. Outros casaram com estas namoradas e formaram belas famílias com a aura mágica do surf.

 

E assim a comunidade foi crescendo, e à sua sombra, o mercado brasileiro de surfwear.
Montado sobre ideais e sonhos, sobre poesia e miragens. No entanto, estranhamente, evoluiu, e como um maremoto avassalador ganhou os corações de milhões de jovens brasileiros, sendo que muitos deles nunca haviam avistado o mar.

 

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Leo Perazzo em momento zen na Cacimba do Padre, Noronha, uma das melhores opções para quem peregrina atrás das ondas brasileiras. Foto: Arquivo Pessoal LP.
Estranhamente, eu não me surpreendia vendo tudo aquilo acontecer. Os gringos, cujo forte nunca foi a Geografia, e que não sabiam se o Brasil era na África ou na Ásia, pressentiram um barulho estranho vindo de algum lugar logo abaixo da cintura do Equador.

 

O baixo-ventre do planeta se mexia. Seus efeitos apareciam como brotoejas nos seus podiuns de campeonatos e nos picos isolados do planeta. Eles se coçavam tentando livrar-se do incômodo, mas a coceira aumentava cada vez mais.

 

Anos se passaram e o “mundo exterior” começou a prestar mais atenção naqueles caras. O mercado oficial de confecção notou que havia um movimento ocupando espaço. Investimentos planejados milimetricamente foram feitos para penetrar neste lugar estranho e tentador.

 

Pragmatizaram-se os procedimentos. Enveredou-se pela sistemática da racionalidade imperativa. A ditadura da mente racional e das “metas” foi se firmando. Cobiças se acenderam à luz de um distorcido capitalismo tupiniquim. Deu-me mais vontade ainda de botar o pé na estrada.

 

“Queremos um pedaço desta torta de alegria, sal, amizades duradouras, mulheres bonitas, prazer e ondas. Aliás, queremos toda a torta!”, diziam. Tudo ficou mais cru e seco. A alma foi sendo gradativamente substituída pelo “só corpo”. A torta endureceu. Alguns ainda tentaram resistir.

 

O sonho possível e realizado pelo dinheiro solitário diluiu-se nas vozes iradas duelando pela primazia do poder. Uma vastidão de prazer foi dispersa. Vários pioneiros pereceram em meio a esta “Idade das Trevas”.

 

As pessoas envolvidas anteriormente no processo inicial, e que continuavam trabalhando em empresas relacionadas, suspiravam de nostalgia dos velhos tempos onde o amor imperava.

 

As decisões, na fase presente, desconheciam em grande parte o aspecto humano e o viam até como um empecilho aos negócios. As pessoas atrapalhavam o livre fluir da circulação monetária e de mercadorias.

 

Foi daí que o “Corpo” mercado começou a sentir os primeiros sintomas de abstinência de Verdade. Eu ouvia os gemidos ecoando nas montanhas da costa, conhecidas como “A Muralha”.

 

As bocas queriam o mel perdido e os beijos perdidos. E as mãos, a criatividade não mais valorizada e restrita a uns poucos guetos, banida. Neste momento, uma palavra chamada Essência principiou a brotar nas rodas e nos papos com cada vez mais freqüência.

 

Ela levantou as questões básicas: como poderia este corpo aparentemente poderoso sobreviver sem alma? Não foi todo este mundo construído em cima de uma emoção? Onde estava ela?

 

Olharam na conta do banco e não a encontraram, vistoriaram todo o espectro de produtos e detectaram poucos sinais de vida, perscrutaram os rostos, mas ninguém mais olhava nos olhos.

 

Para onde teria ido? Com as raríssimas exceções de praxe, ninguém mais envolvido no processo sabia de onde tinham vindo nem o que eram aqueles sentimentos límpidos que deram origem a esta Torre de Babel com vidros fumê.

 

A necessidade, o vácuo na Terra, é preenchida assim que se forma. Pelo o que eu apreendi com as andanças de prancha embaixo do braço, duas ondas não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo assim como a concepção do Nada é muito pouco tangível e até improvável.

 

A Ausência parece grande, mas é uma grande ilusão. A Completude também. Eu sei porque vi de tudo nas escuridões das trilhas. O que fará com que este vazio seja ocupado pelos valores que fizeram a gênese do surf e por mais Homens que sintam ao invés dos que só pensam?

 

Nós somos uma só entidade corpórea nesta Terra. Compartilhamos a gravidade no plano físico, assim como compartilhamos a mente no inconsciente coletivo. Somos UM só. A cada desequilíbrio todos sofrem.

 

Vamos trabalhar para a cura da nossa Unidade humana não privilegiando nenhuma área, mas dando voz a todas. Aceitando que o outro é o nosso complemento da mesma maneira que a nossa sílaba perdida é encontrada e acolhida pelo amigo distante, que a completa com sua voz.

 

Enquanto a alma sem corpo é apenas uma luz difusa contra o céu, o corpo sem alma não é nada. Não estaria na hora de unir as partes?

 

Vou indo, ouvi dizer que uma ondulação de 8/10 pés está caminhando em direção à costa oeste da África. Já pressinto o seu movimento. Se eu conseguir me alinhar com o seu ritmo estarei em sintonia, se eu puder fazer com que meus pensamentos descansem, estarei salvo”.