Leitura de Onda

O último raio

0

 

980x654

Adriano de Souza, que agora lidera o ranking do circuito mundial, exibindo o troféu conquistado em Margaret River. Foto: © WSL / Kirstin


Um vídeo com um curioso título foi parar na capa do site da World Surf League logo após o round 2 da terceira etapa da perna australiana do WCT, em Margaret River, quando todos os surfistas do mundo travaram duelo de vida ou morte nas assustadoras e claustrofóbicas ondas de “The Box”:  

“Brazilian Storm abates”. O verbo “abate” costuma ser usado ao lado da expressão “storm” para indicar a perda de força de uma tempestade, quando uma chuva forte começa a dar sinais de fraqueza, de que vai terminar. 

Para chegar ao título, o jornalista possivelmente levou em conta as derrotas precoces de Filipinho Toledo e Gabriel Medina, que até então eram os dois representantes com melhores resultados recentes no circuito mundial. 

Um caso clássico de edição generalista, perigosa, que reforçava a ideia de que brasileiro não era capaz de surfar ondas maiores e mais potentes e, mais que isso, deixava algumas pontas importantes desamarradas. Afinal, ainda tinha brasileiro na disputa. Um deles era Adriano de Souza, e não poderia ter sido ignorado. 

Adriano é a nuvem formadora da tempestade brasileira. Mais que isso, é o primeiro grande raio. Mas, no evento, foi o relâmpago derradeiro, que sobreviveu quando todos já falavam sobre o fim da tempestade. A previsão falhou.

Antes que algum louco questione mais uma vez o talento do surfista do Guarujá, a vitória foi construída em ondas espetaculares, que variaram entre tubos quadrados e enormes paredes afeitas a arcos, em condições que talvez não sejam repetidas durante a temporada de 2015.  

Para levantar o troféu, Adriano enfileirou, desde as quartas-de-final, Kelly Slater, Taj Burrow e John John Florence – uma lenda, que até então era o melhor surfista da prova; um super local, conhecedor de todas as curvas de Margaret; e, na final, pelas palavras do próprio Adriano, “o melhor surfista do planeta”. Como diz meu primo Marçal, ele venceu “o passado, o presente e o futuro”.  

Adriano tem, hoje, o melhor bottom-turn e, talvez, o arco mais limpo do circuito mundial. As duas manobras, combinadas, sofisticam o seu surfe. Há, ainda, algo além do talento e da absurda inteligência competitiva. Adriano jamais ignora uma eventual superioridade de seus adversários. Ao contrário, valoriza-a. Ele sabe, por exemplo, que Kelly e John John são surfistas capazes de vencê-lo no topo da forma. E trabalha com essas informações, leva-as em conta na hora de traçar suas estratégias. Reduz significativamente o espaço de seus adversários.

A ideia está clara num de seus depoimentos emblemáticos sobre as disputas com Kelly: “Eu só preciso ser melhor que ele durante os 30 minutos, porque, depois disso, eu jamais serei.”

Alguns estrangeiros – e mesmo brasileiros – resistem publicamente a Adriano. E, especialmente, ao fato de ele ser o líder isolado do circuito mundial, com três excelentes resultados na Austrália e a caminho do Brasil. Compraram a briga com o surfista errado. Mais um erro grosseiro. 

A WSL, ao contrário, deve reverenciar Adriano como um dos esportistas mais inteligentes da história do surfe, como um filho legítimo do surfe de competição, razão da existência da entidade. 

Mineiro traz uma moderna noção competitiva ao esporte, que inevitavelmente será copiada por futuros campeões mundiais. A velha imagem do surfista super cool, despreocupado com táticas, deve perder força. Mesmo os grandes talentos, como John John, terão que aprimorar o espírito competitivo e tático. 

Discursos como o de Taj, que, ao perder a bateria, disse ter ficado incomodado com a disputa de ondas, que lhe tirou da sintonia com o mar, serão inevitavelmente enterrados no futuro. Reclamar de espírito competitivo é renegar a disputa pelo título mundial. Taj começou bem a bateria, ao escolher uma esquerda e, assim, bloquear Adriano, mas depois não encontrou outra onda. Perdeu por isso.

A liderança folgada do brasileiro é resultado da maturidade de um surfista com 10 temporadas na elite, do aumento de sua autoconfiança e do aprimoramento de sua já conhecida consistência. Sua posição, claro, será combatida pelos outros 35 surfistas do circuito mundial. Mas não esperem moleza. 

A lycra amarela cai muito bem em Adriano. Ele seguirá, como sempre, trabalhando duro. Tem que ter muita disposição para encarar o novo líder.  

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".