Leitura de Onda

Ode à pedra preta

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Raoni Monteiro comemora vitória brasileira em Sunset depois do jejum de 19 anos. Foto: © ASP / Kirstin.

O bico branco da prancha, sem um adesivo colado, era a marca mais visível do drama de Raoni Monteiro no início deste ano. Talentoso, moderno, bom surfista em ondas pesadas, ele tinha tudo para estar no seleto trem do WT, quem sabe até num vagão vip.

Mas as circunstâncias o tiraram do trilho. Em fevereiro, ele lutava, sem patrocínio, contra tudo e contra todos, em busca de uma luz nos tubos da Cacimba do Padre que lhe desse ânimo para seguir adiante com um fio de esperança de voltar ao lugar de onde jamais deveria ter saído.

Saiu de lá com um vice no bolso, atrás apenas de CJ Hobgood, e mais importante que tudo, vivo. Na entrevista que deu ao sair da água, o desabafo: “Estou tentando fazer de tudo para continuar competindo, estou juntando dinheiro de tudo o que é lugar.”

Além da escassez de cascalho, ele sabia que o ano seria mais duro que os outros, por conta do abismo de pontuação entre os eventos Prime e os demais. “Acho que agora ficou um pouco mais difícil para se classificar. Agora vai ter que fazer final toda hora, vencer campeonato.”

Mas a vida prova que sempre pode ser reinventada. Em abril, a O’neill enxergou no bico branco de Raoni uma oportunidade. Mais de um ano depois de perder o último patrocinador, o surfista brasileiro assinava contrato com a forte marca americana. Era o primeiro e importante passo para realizar o sonho distante de voltar à elite.

 

Raoni fez alguns bons resultados, mas como ele mesmo tinha previsto, sofreu como os novos critérios de pontuação da ASP, como todos os atletas do acesso que disputavam uma vaga ao sol na próxima temporada. Chegou à perna havaiana precisando de um pequeno milagre ganhar a sonhada vaga na elite: vencer uma etapa Prime, mesmo com a presença dos tops.

A primeira e última vez que o Brasil beliscou uma vitória na Tríplice Coroa em terras havaianas foi no distante ano de 1991, com Fábio Gouveia em Sunset. Uma combinação de fatores que inclui a pouca tradição do Brasil em ondas pesadas, as dificuldades para treinar nos picos mais disputados de Oahu e a falta de sorte impediam outra vitória.

Semana passada, o palco, novamente, era Sunset. A O’neill, patrocinadora de Raoni, bancava a etapa – o que em tese salvaguardava o brasileiro de possíveis erros mais grosseiros de julgamento. Raoni foi avançando sem fazer muito barulho e, a partir do round quatro, atropelou Joel Parkinson e por duas vezes Mick Fanning, eliminando-o na segunda.

O mar não lembrava tanto Sunset – assim como ocorrera na final vencida por Fabinho. Mas Raoni não tinha nada com isso, e surfou muito bem as ondas que variaram de 1 a 3 mtros desde o início do evento para conquistar uma vitória histórica.

Os generosos pontos da conquista de um evento Prime catapultaram Raoni de tal forma no ranking que ele saiu de um cenário de chances remotas para uma vaga consolidada no WT.

Num Sunset grande, Raoni ainda estaria no jogo. Ele se sente à vontade na poderosa onda havaiana por ter sido criado na mais poderosa onda do Brasil, Itaúna. Não por acaso, três anos atrás, Léo Neves, outro surfista moldado no point, bateu na porta num Sunset com todas as letras mais gordas. Perdeu o título por falta de sorte, a instantes do fim da bateria.

Tanto no surf de Raoni quanto no de Léo, a onda de Itaúna transparece. Os arcos são bem executados, a linha é afeita à onda power. É como um selo, ou mais que isso, uma dádiva que os dois levarão para a água enquanto estiverem vivos. Itaúna, um topônimo de origem indígena que significa “pedra preta”, merece ser reverenciada. É na praia da pedra preta que acontece um dos milagres da formação de ondas de qualidade na costa brasileira.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves, da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".