Leitura de Onda

Oração a São Conrado

Manifestação em São Conrado (RJ), 6 de março de 2005

 

Manifestantes protestam contra poluição de São Conrado em março de 2005. Foto: Fernando Bulhões.

A praia de São Conrado é um luxo. Oferece um pôr-do-sol na moldura da Pedra da Gávea, um anfiteatro do Maciço da Tijuca ao fundo coberto por Mata Atlântica e, no canto esquerdo, uma das melhores ondas – senão a melhor – do Rio de Janeiro. Rápida, aguda, tubular e forte como as melhores ondulações de pico. Um expresso cilíndrico ao alcance de todos.

 

A praia de São Conrado é um lixo. O esgoto desce da Rocinha, sem tratamento nem vergonha, e jorra exatamente em cima dos surfistas. A areia vive tomada por pets, sacos plásticos e outros resíduos flutuantes. Volta e meia, aparece coisa pior. Anos atrás, durante as absurdas obras de saneamento do bairro, explodiram o costão sem sequer tirar os surfistas da água. Pedras pontiagudas foram parar na arrebentação, para desespero dos pés de todos nós.

 

São Conrado vive o abismo entre dois mundos. De um lado, estão alguns moradores de um dos bairros mais caros do Rio, com IPTUs estratosféricos, para quem a praia significa apenas a vista; de outro, surfistas (locais ou não) e moradores da Rocinha, tratados como categorias inferiores de cidadãos, historicamente inconvenientes aos olhos do poder público tradicional.

 

Uma curiosa e absurda história aumentou a tal fenda entre os dois mundos: No início da década passada, o governo estadual do Rio anunciou que resolveria o problema do esgoto “in natura” que descia da Rocinha para a praia de São Conrado.

 

Passada a euforia, os surfistas perceberam que as obras – que tinham o apoio da associação de moradores do bairro – acabariam apenas com as línguas negras. Em outras palavras: as grãs-finas de nariz de cadáver de Nelson Rodrigues, do alto de suas varandas com vista para o mar, ficariam satisfeitas ao ver a areia branquinha de novo, sem os valões que manchavam o cenário.

 

Mas a obra, quem diria, apenas desviava todo o volume de caca para o canto esquerdo, exatamente em frente ao pico dos surfistas. Os gestores públicos logo se apressaram em dizer que uma estação de tratamento de esgoto seria inaugurada no local em 2005, e prometiam tomar banho de mar em frente ao cano por onde sairia os tais efluentes tratados.

 

Balela. Nada que uma pequena apuração não derrubasse: um levantamento feito em 2007 provou que a qualidade da água piorou desde que a tal estação de tratamento, que custou a baba de R$ 16 milhões, entrou em funcionamento. Dinheiro jogado no ralo, literalmente.

 

Tão aterrador foi descobrir que, se outros sistemas de saneamento funcionassem, a estação sequer seria necessária. Explico: abaixo da unidade de tratamento, há uma bomba elevatória que, em tempo seco, deveria levar todo o esgoto produzido pelo bairro por uma tubulação até o emissário de Ipanema, que descarrega a matéria orgânica a 4 quilômetros da costa.

 

Mas, como nada funciona à vera no poder público, a elevatória vive parada, mesmo em dias sucessivos de sol, quando as ondulações de Leste fazem o rolo compressor de esquerdas funcionarem à beira da perfeição no canto da praia e atraem hordas de surfistas.

 

Por conta dessa omissão, ou melhor, negligência, ou melhor, desse crime mesmo, que numa das reportagens que fiz sobre o tema em São Conrado percebi que a garotada da Rocinha, que usa aquelas ondas para fugir de um futuro obscuro, estava contaminada pelo maldito esgoto não tratado pelo poder público.

 

Vários deles viviam com a pele tomada por manchas de micose. Um monitor da escolinha de bodyboard tinha acabado de sair do hospital, onde foi se tratar de uma hepatite A, doença que pode ser transmitida pelo esgoto.
O mais estranho é que, mesmo sabendo disso tudo, insisto em remar naquelas ondas. Surfei lá pela última vez em 2010, seduzido pelas belas linhas de esquerda que se erguiam no canto esquerdo nos últimos dias do ano, mas incomodado pelo eterno mal cheiro.

 

Escaldado pelas águas também poluídas do Leblon, entre o medo de ser contaminado pelo esgoto é menor que o prazer de surfar numa praia tão bonita, fiquei com a segunda opção. Mas sigo protestando contra a falta de respeito com os verdadeiros usuários de São Conrado.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves, da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

 

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