Leitura de Onda

Os donos da onda

Crowd, Pipeline, North Shore de Oahu, Hawaii

 

Localismo, uma praga do crowd, deve ser combatido quando descamba para a violência e intimidação. Foto: Bruno Lemos / Lemosimages.com.

Foi uma luta para conseguir viajar no aniversário da filha. O sonho dela era comemorar a data em Búzios. Arruma dinheiro dali, arruma um hotel daqui, a mulher negocia um feriado sem trabalho, eu negocio com meus clientes, a gente arruma emprestado um stand up paddle com um amigo. Ufa, pé na estrada.

 

 

Nas viagens com a família para a praia, adoto a regra de sempre levar pranchinha. Não sobra muito tempo para as ondas, mas a escapadinha é sempre saudável. E lá fui eu, num feriado qualquer deste ano, depois de uma manhã de SUP com as crianças, para Geribá.

 

Aqui vale uma pausa explicativa de minha memória afetiva de Búzios. Não sou exatamente um local da cidade, porque não moro nem sequer tenho casa lá. Mas, por circunstâncias diversas, Geribá acabou sendo uma das ondas que mais frequentei na vida.

 

Aos 14 anos, há 26 anos, acampei pela primeira vez aquela praia. Depois, fui diversas outras vezes no mesmo esquema de barraca, prancha e mochila na velha Salineira, ônibus que ligava Cabo Frio a Búzios, já que na época só havia linha do Rio para a cidade vizinha.

 

Fiquei tão identificado com o lifestyle da cidade que todos os meus amigos que tinham casa lá me chamavam para passar férias. Passei temporadas inteiras nessas casas, às vezes com uma pequena muda de roupa, tendo como única obrigação procurar ondas e ser livre. 

 

Mais tarde, já nos tempos de repórter de meio ambiente, tornei a cidade uma de minhas pautas obrigatórias. Denunciei tentativas de ocupação de áreas de proteção permanentes, lançamentos de esgoto clandestinos, elaborações de planos danosos para a cidade. Sabia que dava, ali, uma pequena contribuição para a preservação da mais bela península do Brasil.

 

Hoje, pai de família, não teria mais tantos motivos para ir ao caro balneário, mas minha mulher e filhas elegeram a cidade o destino preferido. Paris? Que nada, elas preferem Búzios. Assim, meio sem querer, acabei eternizando minha ligação afetiva com a cidade. 

 

Feita a observação, voltemos ao mar de Geribá no feriado de quinta. O pico estava com um desenho típico dos dias que sucedem os swells mais fortes: meio metro, com uma grande vala no meio da praia, aliada a uma forte correnteza, e nada, absolutamente nada, ao redor.

 

O crowd, portanto, concentrava-se todo numa onda só, como já havia acontecido na véspera. Não era um crowd qualquer: alguns surfistas locais apresentavam performances fora da curva. 

 

Dentro d’água, eu travava uma luta particular com meu corpo, no meio da forte correnteza, Brigava contra a idade, a falta de remada, a falta de treino e me esforçava para me posicionar de modo a ter oportunidade de surfar uma onda boa no meio do crowd.

 

Uma onda boa e pronto, eu estaria feliz.

 

Quando a vala parecia me levar para alto-mar, pintou a série. Por sorte, estava bem posicionado. Remei, ela encheu e comecei a costurar para tentar chegar ao inside. Eu já estava na onda há um tempo no momento em que vi um vulto remando perto da espuma e gritando para que eu saísse da onda. Era um dos surfistas talentosos da praia. 

 

Na hora, abri os braços, num sinal de incredulidade, como quem pergunta por que um garoto que já massacrou 30 ondas naquele dia, usando bordas e manobras aéreas, precisa interferir na esquerda de num cara que só está tentando se divertir.

 

Quando ele voltou ao outside, perguntou-me, de modo inquisitório, qual era o problema.

 

Tenho como princípio de vida a gentileza e o respeito. 

 

Então, respondi ao surfista, com toda a educação, que o problema era ter 40 anos, remada débil, pouco tempo disponível para o surfe por conta dos compromissos com a família e, na hora de surfar a onda que vai me deixar feliz por uma tarde, outro surfista entrar nela.

 

Ele ficou surpreso com a resposta. Tentou argumentar, dizendo que era a vez da geração dele, mas logo perdeu o controle. Dizia que eu estava “impregnando” o pico, e gritava, para ser ouvido pela dúzia de amigos ao seu lado: “Aqui é nós, mano!”. 

 

Eu, lembrando os tempos em que lutei para preservar aquela praia, perguntava a ele, incrédulo: “Quem é “nós”? 

 

Minha lógica não resistiu à tensão dele. O local gritou que eu fosse surfar em outro lugar. Em outras palavras, quis me expulsar do pico. Gentilmente, eu disse que não sairia de lá.

 

Peguei mais duas horas de onda ao lado dele. As ondas, inacreditavelmente, passaram a me escolher. Como um eleito. Peguei mais ondas que sempre. 

 

Mas a experiência do surfe para um cara da minha idade não está mais tão ligada à performance, e sim ao momento, à energia, à ideia de que aquele é um momento lúdico, leve, diferente de todos os outros vividos por um adulto.

 

Por isso, lutei para aquele episódio não estragar a minha experiência de prazer com o esporte, lutei para que aquilo não arranhasse minha memória afetiva daquela praia. Voltei nos dias seguintes, e encontrei muitos dos que estavam no pico no dia do ocorrido. 

 

Logo depois da discussão, percebi que parte dos outros locais não concordou com a postura do cara que tentou me expulsar. “Não podemos transformar isso num Quebra-Mar”, disse um deles, numa referência a um pico do Rio onde o localismo virou caso de polícia. O outro, educadamente, pediu que eu não discutisse mais, que relevasse o episódio, que aquilo não era onda que merecesse qualquer discussão. 

 

Pensei sobre a pertinência desta coluna. Decidi escrevê-la por achar que é uma contribuição importante para a discussão do comportamento primitivo e ultrapassado do localismo. 

 

O argumento de que isso acontece no mundo todo é chulo – afinal, não temos que importar a pior experiência dos outros. 

 

Reconheço a legitimidade de surfistas locais, que zelam pela praia, lutam por sua preservação e conhecem todas as curvas das ondas no quintal de casa. Entendo até que eles tenham certa preferência na disputa por ondas. E respeito isso. 

 

O que faz esse comportamento primitivo e criminoso de tentar expulsar surfistas da água, de tirar-lhes o direito constitucional de ir e vir, seja eternizado? 

 

A ideia desse texto é exatamente provocar a reflexão em quem ainda acha isso coisa banal. Imagino que eu vá encontrar resistências, mas é o momento oportuno de o tema ser discutido sem filtros entre nós, que amamos as ondas. O mar é de todos.

 

Tulio Brandão é jornalista.

 

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