Leitura de Onda

Pense numa nota

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Para Tulio Brandão, Adriano de Souza foi o surfista mais completo da prova em Bells Beach. Foto: © WSL / Cestari

 

Meio da Barra, 2000. Um brasileiro conhecido pela capacidade de encarar os gringos de frente senta a meu lado, no palanque do Rio Surf International, etapa carioca do circuito mundial. À nossa frente, um surfista de Pindorama, que sofria diante de um top australiano, num mar não mais que ordinário, acha uma da série.

 
– Pense numa nota – diz ele. – O brasileiro vai ganhar de um a dois pontos a menos do que você imagina. Essa é a nossa realidade. 
 
O locutor anunciou e… bingo. A conta do surfista e parceiro de palanque estava assustadoramente correta. Aquilo me deu um nó na garganta, uma vontade louca de voltar para a redação do extinto Jornal do Brasil com a pauta pronta: roubo.
 
Decidi esperar mais um pouco, dar uma chance ao tempo, à subjetividade. As histórias costumam se acomodar depois de algumas horas de sono. Naquela noite, encontrei um amigo americano, jornalista de surfe dos bons. Contei o caso, disse que já tinha até um título: “A matemática do preconceito”. 
 
Ele viu a mesma bateria, mas discordou da minha avaliação. Sua noção estética do surfe, diferente da minha à época, valorizava a sutileza dos movimentos, a capacidade de ser harmônico. Eu prezava a contundência, a explosão. 
 
Tivemos um bom embate de argumentos. Adivinhe quem ganhou? Deu empate, claro, mas como estávamos no Baixo Gávea, sob meus domínios, decretei vitória. E ele que pagasse a próxima rodada de chope. A tulipa era o meu troféu.

 

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“Jamais soubemos quem venceu realmente aquele debate. Nem a bateria, apesar do australiano ter sido declarado vencedor. Os critérios de avaliação no surfe são como cordas frouxas, incapazes de nos dar a certeza que desejamos em nosso mundo objetivo. Ora um elemento ganha peso, ora outro”, escreve Tulio Brandão. Foto: © WSL / Kirstin

 

Jamais soubemos quem venceu realmente aquele debate. Nem a bateria, apesar do australiano ter sido declarado vencedor. Os critérios de avaliação no surfe são como cordas frouxas, incapazes de nos dar a certeza que desejamos em nosso mundo objetivo. Ora um elemento ganha peso, ora outro.
 
Fizemos – e fazemos – julgamentos de perspectivas distintas. A cultura, as influências no surfe, a memória de imagens, todos os paradigmas que guardamos contribuem decisivamente para a formação de uma opinião. 
 
Em alguns casos, a bandeira do país entra de penetra nessa história, como mais um fator determinante no julgamento. De todos as influências externas aos critérios formais, a avaliação pela nação é a mais condenável.
 
Mas, como dizem os grandes jornalistas, a neutralidade é como a cenoura na frente do burro. Você deve persegui-la, mesmo sabendo que jamais a alcançará. 
 
Mick Fanning surfou brilhantemente em Bells. Estava melhor que nunca, mais potente, mais ágil, mais preciso – como se isso fosse possível, depois de três títulos mundiais. Sua vitória, a quarta da carreira na direita mais tradicional do circuito mundial, é uma reverência à beleza do esporte. 
 
Adriano de Souza foi fabuloso em Bells. Surfista mais completo da prova, combinou os arcos bem desenhados, uma abordagem mais agressiva, vertical, e um espírito competitivo monstruoso. Tem muito talento sim, embora haja louco que ainda duvide. Parece mais forte, espiritualmente, que todos nós juntos. Sua vitória, a segunda da carreira em Bells, é uma ode à grandeza do esporte.
 
Jordy Smith massacrou as ondas de Bells. Seu carving com as bordas plenamente afundadas parecem ter sido desenhados para aquela direita. As chutadas de rabeta assustam até o lip mais encrespado da onda australiana. Fez uma belíssima bateria de quartas contra Mick. Sua vitória, a primeira da carreira em Bells, é uma declaração de amor ao melhor carving do mundo.
 
Jadson André fabricou as ondas em Bells, quando elas não existiram. É um construtor de mundos impossíveis, um cara que está aí para romper com o formalismo estético, com o surfe de Vênus de Milo. Subverte os padrões, nos mostra novas abordagens. É, além de tudo, uma fortaleza humana. O round 5, contra Mick, foi soberbo. Sua vitória, a primeira da carreira em Bells, é um monumento à desconstrução de verdades estabelecidas antes de entrar na água.  
 
Meu amigo americano provavelmente discordará de alguns de meus campeões. Os juízes, claro, já fizeram isso. E alguns dos leitores também. É aí que está o drama e, ao mesmo tempo, a beleza do esporte. Assim é o surfe.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".