Não é sempre que somos surpreendidos como uma atuação tão admirável de um surfista profissional em um campeonato como o Mavericks Surf Contest 2010.
Para mim, a causa desta admiração não encontra razão na colocação obtida por Carlos Burle na contenda ou na avaliação de sua habilidade em manobrar naquele mar monstruoso.
O que, de fato, impressionou-me na performance do surfista pernambucano foi a seriedade de seu surf, sobretudo, na onda que ele não “completou” na final.
Utilizo aqui o termo seriedade numa dimensão diferente daquela que estamos acostumados a usar para qualificar aquilo que vi em Mavericks.
Normalmente, dizemos que alguém é sério porque a sua feição é fechada, a sua conversa monossilábica e o seu comportamento é de poucos amigos. Não creio que possamos atribuir a Carlos Burle, enquanto pessoa física, nenhuma dessas avaliações.
Eu, que somente o conheço pelas inúmeras entrevistas nos meios de comunicação especializada, nos comentários realizados por ele em seu blog e no Twitter, poderia dizer, sem que isso se confunda com qualquer sorte de pretensão psicanalítica, que estamos diante de alguém com sorriso fácil, bem humorado e cuja relação com seus pares revela-se sempre afetiva e próxima.
Vista a questão por esse ângulo, seria necessário, aqui, definir com certa clareza o modo como o surf apresentado por Burle nesse campeonato pode ser qualificado como sério. Para mim, a seriedade traz sempre consigo uma dimensão trágica, nos termos apresentados pela tradição ocidental.
Tragédia, além de ser uma atribuição a uma forma dramática criada na Grécia Antiga por volta do século VII a.C.; é uma palavra que implica a idéia de que estamos presos a um destino. E nada que possamos fazer será capaz de alterar aquilo a que estamos destinados.
Se nos aproximarmos dessa compreensão de tragédia e retiramos toda indumentária da cultura, veremos que a maior tragédia para o ser humano é, certamente, a morte. Dela, não podemos escapar e, certamente, não há nada que possamos fazer para ludribriar-lhe.
O fato é que não conseguimos lembrar o tempo todo de que a vida possui um fim, pois ninguém consegue pensar nisso com muita intensidade. Caso contrário, não seria possível viver. Isso porque a vida é justamente o que se constrói no meio do caminho. A alegria de ver os filhos correndo na praia, o sentimento provocado por um grande amor ou, simplesmente, a vontade de seguir adiante.
Ocorre que, vez ou outra, nós somos surpreendidos por formas estéticas, ações ou atitudes que nos provocam um arrebatamento capaz de retirar-nos do estado de letargia no qual nos encontramos, imersos aos afazeres do cotidiano, para escancarar a única certeza de que possuímos sobre a vida.
Certamente, eu qualificaria a onda que Carlos Burle não completou, de acordo como os critérios de julgamento do campeonato, na final final do Mavericks Surf Contest 2010, como um desses instantes.
O nível de risco envolvido no drop, o tamanho descomunal da parede que caiu em bloco sobre o surfista que, heroicamente, tentou desafiá-la transcendem em muito os limites de um campeonato de surf. Eu jamais conseguiria avaliar, de fato, o que se passou naquela onda, pois nunca tive disposição, coragem ou habilidade para surfar mares imensos.
Por isso, somente posso avaliar o que aconteceu enquanto espectador, como alguém que vê, diante de si, materializado pela ação de alguém, humano como eu, o desafio daquilo que nem todo humano consegue desafiar: a morte.
É preciso, aqui, cessar o ritmo regular da vida e calarmos frente à seriedade do que se passou. Não gostaria de dizer, nesse texto, da disposição de Burle e do modo como ele sempre é considerado pelos seus colegas de profissão – este é o maior reconhecimento que um profissão pode ter -, pois acredito que aquela onda, além de confirmar o que já sabemos, abre caminho para outras veredas.
Se eu estiver certo e este instante do nosso esporte de coração é capaz de provocar em qualquer ser-humano tais sentimentos, é possível que a onda de Burle rompa as fronteiras do universo do surf e se inscreva em outro patamar de significação. Não estamos, pois, diante de um fato significativo apenas para quem surfa, mas para qualquer um que vive e sabe o que isso implica.
Por isso, foi-me impossível não associar a seriedade do surf apresentado por Burle à seriedade de um outro expoente da nossa tradição cultural, o saxofonista Jonh Coltrane. Certa vez, assisti a um documentário sobre Jazz, no qual o autor de A Love Supreme era apresentado por seus companheiros de profissão como o músico mais sério que já se viu na moderna música americana. O fato é que a Coltrane não tinha o lirismo de Miles Davis ou a capacidade inventiva de Duke Ellington, dois dos maiores músicos de Jazz do século XX.
Coltrane possuía, isso sim, a coragem de manifestar em suas harmonias algo de outra natureza, a nossa tragédia. Ele tocava como se estivesse à beira da morte tamanha a altura e a força de seus solos. Para quem já escutou as suas gravações, é normal, em determinados instantes, constatar que ele desafia os limites da fisiologia, do tempo da respiração. Coltrane tocava para lembrar aos seus ouvintes, o que, de fato, está em jogo.
O surf apresentado por Carlos Burle no Mavericks Surf Contest 2010 tem, exatamente, essa dimensão. Eu espero, realmente, que ele tenha consciência do que fez. Por mais que a avaliação dos juízes não tenha dado conta do que ocorreu, por mais que ele tenha subido no pódio com a certeza de que aquele quinto lugar não era seu de direito, lembraremos, por muito tempo, de sua atuação naquele dia de ondas descomunais.
Que se dane os critérios de avaliação! Que se dane a premiação! Por mais que Burle tivesse merecido o primeiro lugar e os dólares destinados ao campeão, o seu feito merece, de todos nós, um silêncio respeitoso, daqueles que somente alguns atos humanos são capazes de provocar. A onda que Burle não “completou” é a mais completa representação daquilo que realmente nos importa.
João Carlos Guedes da Fonseca é professor da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP.