Leitura de Onda

Podres poderes

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Apesar de oferecer boas ondas, o Leblon (RJ) sofre com eventuais descargas irresponsáveis de esgoto. Foto arquivo: Fábio Minduim.

Dias atrás, num domingo chuvoso sem Maraca, escapei para uma horinha de surfe no Pontão do Leblon. Um metro servido, pouca gente na água. Seria uma ótima sessão, não fosse um inimigo invisível, com quem convivo sem prazer desde garoto: a comporta aberta no canal da Avenida Visconde de Albuquerque, lançando esgoto sem tratamento goela abaixo dos surfistas.

Desde aquela noite, lido com um problema gastrointestinal sério – náusea, diarreia, dores, etc. Não serei louco de bancar oficialmente a relação de causa e efeito entre o esgoto sem vergonha a que fui exposto no mar e a minha doença. É difícil estabelecer o nexo causal em doenças de veiculação hídrica, e os administradores públicos, com vergonha ainda menor que o esgoto, sabem disso.

O Rio de Janeiro e outras cidades médias e grandes do país convivem há anos com modelos de saneamento questionáveis. Um deles é o tal tratamento de tempo seco, que reduz consideravelmente a vazão de esgoto enquanto São Pedro não chora lá no céu.

O segredo para o sucesso desse modelo é sujo: admitir que rios, que poderiam ser tratados, não passam de valões de esgoto. Enquanto não chove, a comporta fecha a boca do rio e a bomba elevatória leva toda a água contaminada para emissários ou redes.

Mas, basta cair a primeira gota, para que a comporta seja aberta e o todo o esgoto acumulado por ligações clandestinas e políticas públicas de fiscalização e manutenção ineficientes avance, sem barreiras, rumo ao organismo dos surfistas.

Outro emblema de incompetência – ou de coisa pior – são as constantes medidas paliativas, que jamais resultaram em alguma melhora de indicadores ambientais.

São tecnologias como as unidades de tratamento de rio (UTRs), que usam a mesma lógica de entender o esgoto como valão, e tentam tratar, sem sucesso, todo o volume de água contaminada que corre pelo leito. Ou como as embarcações que, em locais como a raia olímpica da Baía de Guanabara, passarão a recolher, de maneira patética, o lixo flutuante da superfície d’água.

O administrador público deveria ter vergonha disso, mas não.

 

Como sempre, todas as promessas de despoluição – com troncos separadores de água e esgoto, de maneira completa, como tem que ser feito – vão para o ralo. Não é de se surpreender que a promessa de fortes investimentos na descontaminação da Baía de Guanabara, umdos legados anunciados pelo poder público, seja a primeira a ser oficialmente descumprida.

Enquanto isso, o garoto da Baixada Fluminense vive no posto de saúde e eu, literalmente enjoado disso tudo, sigo o meu caminho para a fila de hospital de plano de saúde mais próxima.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".