Leitura de Onda

Turning point

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Gabriel Medina chega às quatro últimas etapas na liderança do circuito mundial com uma coleção de atributos finalmente reconhecida mesmo pelos seus críticos mais insistentes. Foto: © ASP / Kirstin
 

Do alto da bancada do Jornal Nacional, William Bonner disparou, enquanto Patrícia Poeta pontuava a mensagem com sorrisos e sinais de aprovação:

 

“O surfista brasileiro Gabriel Medina, de 20 anos, conseguiu uma vitória espetacular no Taiti. Depois desta manobra, ele derrotou por uma diferença de 3 centésimos o americano Kelly Slater, 11 vezes campeão mundial. Gabriel venceu três da sete etapas e lidera o circuito mundial.”

 

Ver Medina saindo de um tubo no horário nobre da Globo é apenas um indício do tamanho de seu feito, embora muito provavelmente o próprio Bonner não tenha a dimensão exata do que aconteceu na idílica paisagem da Polinésia Francesa.

 

Na verdade, todos nós estamos tentando reunir os cacos depois dessa fantástica explosão de sentidos provocada pelas enormes massas d’água taitianas.

 

Mas talvez possamos ajudar o apresentador com um resumo em quatro pequenos tópicos. Até porque tudo indica que Bonner ainda vai falar muito de surfe.

 

– Medina venceu o mais épico dos eventos da história do esporte, em condições extremas, que ofereciam um risco iminente e uma recompensa raríssima, em forma de cilindros gigantes na rasa e afiada bancada. Para surfistas de todo o mundo, esta foi a Copa das copas, a quintessência do esporte.

 

– Medina venceu o rei em king’s land. Destronou-o em sua fortaleza. Aqui, não há nenhum exagero. Kelly Slater é o titular daqueles tubos, o melhor e mais rodado surfista do mundo em ondas agudas, uma rara lenda viva que, para nossa sorte, ainda está em plena atividade. Em Teahupoo, até a final, era o melhor.

 

– Medina tem uma característica singular: não há nele qualquer traço do amaldiçoado complexo de vira-latas de alguns atletas de Pindorama. Ao contrário, é ele, com intimidadora confiança e fúria competitiva, quem oprime adversários. Num esporte historicamente dominado pela cultura saxã, isso é um feito.

 

– Medina consolidou sua liderança na sequência mais difícil da temporada, em ondas de gente grande: ganhou em Fiji, ficou em quinto na África do Sul e voltou a vencer no Taiti. Chega às quatro últimas etapas na liderança do circuito mundial com uma coleção de atributos finalmente reconhecida mesmo pelos seus críticos mais insistentes. Vence em todas as arenas, é assustador em todas as ondas. Dobrou-os, entortou-os na bancada de coral de Teahupoo. E agora tenta o título.

 

Dito o básico, vamos entrar um pouco no evento.

 

Sejamos francos: Kelly Slater e John John Florence alcançaram um nível inatingível pelos demais mortais nas maiores da série.

 

Slater subvertia o trilho convencional, surfando na parte de cima do tubo, onde nada que não fosse ele conseguiria ficar. JJ parece um artista naquela onda. Seu surfe – sereno, despreocupado, neutro – é uma peça perfeita, bem acabada, desenhada para aquele tipo de onda. Em determinadas ondas, o surfe do havaiano provocou uma sensação de arrebatamento digna de obra de arte.

 

Os dois monstros fizeram uma bateria para a história na semifinal. São ondas para sempre, que marcarão as gerações futuras pela naturalidade com que foram surfadas, a despeito dos enormes riscos oferecidos.

 

Vi, ali, uma bateria sem vencedores, mas se tivesse que escolher alguém, ficaria com o John John, pela combinação das duas ondas, ou pela forma com que surfou a última onda, sem um pingo de erro, na última volta do ponteiro.

 

Medina, que estava na outra chave, fazia a sua parte. Desde o início do evento, foi preciso, cirúrgico, furiosamente competitivo. Atravessou cinco fases destilando apurada técnica de tubos e inteligência tática.

 

Ele fez vários movimentos estratégicos ao longo do evento, que minavam a cabeça dos adversários ou jogavam os holofotes em sua direção. Começou no primeiro round, quando surfou uma onda da série com os dois braços levantados, como se indicasse que estava ali para surfar de verdade em Teahupoo.

 

Contra Nathan Hedge, no round 3, tirou-lhe a prioridade numa fantástica batalha de remada, depois de surfar a segunda onda da série. Contra Kolohe Andino, nas quartas-de-final, levou-o para fora do pico, tal qual já ocorrera em Fiji, para depois, mais bem posicionado, pegar a primeira onda da bateria. Na semifinal, a estratégia de Medina, usada em quase todo o evento, de abrir baterias com scores progressivos tonteou tanto Bede Durbidge que ele quase não pontuou.

 

Chegamos à final. Os críticos ainda duvidavam da capacidade do brasileiro de surfar as maiores do dia, como Slater e JJ vinham fazendo ao longo do evento, quando Medina remou em uma bomba e saiu espremido pela baforada no canal de Teahupoo. Mais uma vez, ele usava a tática de pressionar o adversário com pontos, de encurralá-lo no corner.

 

Só que, desta vez, era Slater, o mais inteligente dos surfistas, a cair na arapuca do brasileiro. Quando o mito errou o posicionamento na saída de um tubo, tentando forçar demais no trilho de cima, todos parecem ter entendido o que Medina estava fazendo, ali, em ondas épicas, contra o melhor da história.

 

Medina só não saiu de um tubo, logo depois disso, deixando ainda uma última porta aberta para o americano reagir. Mas, depois de tanto trabalho, os deuses resolveram sentar ao lado do brasileiro e mandaram ondas de qualidade insuficiente para a virada do 11 vezes campeão mundial.

 

Estamos todos atordoados com esse trator chamado Medina, que atropelou a temporada. Slater também deve estar. Mas a última vitória, em especial, aparenta ser um claro turning point na história do surfe mundial. Vencer o maior da história num mar histórico, único, na bancada mais assustadora do planeta, é um ato definitivo, sem volta. Marca uma mudança de percepção do mundo.

 

O bom é que as vitórias do brasileiro podem ter reacendido uma chama no americano, a ponto de fazê-lo escrever uma suposta mensagem de reverência ao brasileiro no Instagram. Para mim, é coisa de enxadrista, e dos bons. 

 

Ele deve ter visto um Medina mais maduro quando olhou para o próprio espelho. E sorriu, mais vivo do que nunca.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".