Leitura de Onda

Remembering the end of Apartheid

Adriano de Souza, Billabong Rio Pro 2011, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro (RJ). Foto: Fábio Minduim.

 

Adriano de Souza ganha no campo, mas saxões resmungam pelo Twitter. Foto: Fábio Minduim.

Escolhi o título para qualquer cidadão do mundo rico, do mundo branco, anglo-saxão e protestante, do mundo que nasceu sem conhecer dificuldades, entender a mensagem.

 

Há muito tempo o discurso virulento, radical, perdeu o posto para posturas mais ponderadas, equilibradas. Aprendi, na vida e no jornalismo, que condenar sem todos os elementos de uma história é sujeitar-se ao erro, ao preconceito que tanto abominamos.

 

A reação de americanos e australianos à vitória de Adriano de Souza sobre Owen Wright nas quartas-de-final do Billabong Pro, no Rio, me pegou no contrapé. Tive momentos de náusea, tive vontade de vociferar como um animal tropical, já que é disso que muitos deles têm medo: de nosso espírito selvagem, livre, determinado, das picadas dos nossos melhores insetos.

 

Mas preferi relatar ponto a ponto os fatos como se estivesse num monótono chá das cinco, elegantemente vestido, ao lado de velhos saxões cheios de certezas.

 

O primeiro movimento público foi dos australianos, que se esconderam atrás dos 140 caracteres do Twitter para criticar o resultado ou ainda debochar do floater que decidiu a bateria. Até aí parecia ser apenas o retumbante recalque de Joel Parkinson e seus amigos, com a perda da liderança da temporada, somado à derrota direta de um compatriota.

 

Mas um olhar mais atento estranharia tanta grita contra o resultado de uma bateria reconhecidamente apertada. Afinal, quantas vezes na vida os educados saxões não viram close heats discutíveis envolvendo vitórias de Joel, Taj, Kelly, Dane, Jordy e de outros preferidos do passado?

 

Num flashback incontrolável, 549 baterias entram em fila na cabeça.

 

Deixo a lista para os leitores, porque preciso explicar aos distintos companheiros do chá das cinco o segundo movimento público em torno da bateria de Mineiro. Os donos do surf devem ter feito muito barulho para que a ASP, dois dias depois do fim do evento, publicasse em seu site um comunicado oficial com as justificativas de seu julgamento.

 

A decisão de explicar o resultado é patética e temerária, ainda que a nota oficial defendesse a performance de Adriano. Ao abrir o precedente, a entidade reconhece e legitima a polêmica, além de dar margem para qualquer outro surfista, a partir de hoje, exigir uma explicação formal toda vez que for derrotado numa bateria que ele considerar disputada. A subjetividade certamente vai estender esse limite ao insuportável. Basta que um surfista perca por décimos.

 

Qualquer observador mais atento estranharia ainda o fato de a primeira justificativa oficial de um julgamento da ASP surgir a partir da derrota de um australiano apontado como promessa, e não de um surfista não eleito de um país de menor tradição, que não está acostumado a ver a sua bandeira no alto do pódio. Afinal, pela estatística, são muito maiores as chances de uma derrota injusta acontecer a uma das nacionalidades ainda sem título mundial.

 

Os saxões acostumados a trocas de gentilezas ficariam incomodados com um latino indignado no meio do chá das cinco. Não há como ficar calado diante do artigo do jovem editor-assistente da Surfer, o californiano Aaron Carrera, que ataca frontalmente o julgamento do evento, sugere que os juízes responsáveis pela bateria sejam punidos, afirma que Adriano terá para sempre um asterisco colado ao seu nome (indicando o resultado injusto) e pergunta, em tom irônico, desde quando um floater é considerado manobra.

 

Os brasileiros reclamaram aos montes, e mesmo alguns leitores americanos – poucos, é verdade – admitiram que o texto, a postura dos surfistas no Twitter e a pressa da ASP em explicar o resultado escorregava, sim, nas tintas do preconceito.

 

A esta altura, a pompa do chá das cinco já estaria arruinada, e saxões estariam nos chamando de selvagens subdesenvolvidos. Mas, com um pouco de calma, o exótico amigo dos trópicos explicaria a qualquer inglês a participação polêmica de seus colonizados na história da ASP.

 

A começar pelos tempos de Apartheid, no início dos anos 80, quando a entidade ignorava o brutal sistema de segregação racial existente na África do Sul e realizava, em parceria com a elite branca do país, etapas do circuito mundial nas ondas geladas daquele país.

 

Depois, pela histórica e criminosa condescendência com a violência de alguns havaianos, que usam a dependência que o esporte tem de suas ilhas para oprimir surfistas de países de menor tradição. As imagens do tapa na cara que Makua Rothman deu em Paulo Moura e de Sunny Garcia correndo feito um animal atrás de um desesperado Neco Padaratz em pleno evento da elite são trágicas para o esporte, seja qual for a nacionalidade do espectador. Isso sem falar nas inúmeras ameaças feitas em finais de prova, dentro d´água, a surfistas de fora.

 

Este ano, somente este ano, os dirigentes começaram a se mexer, curiosamente quando a violência foi registrada em território australiano. Mas fizeram pouco: não pode haver qualquer espaço para um agressor reincidente num esporte que pretende ser competitivo e sério.

 

Na hora de falar do julgamento, o melhor mesmo é ter a educação que australianos, havaianos e californianos não tiveram em nenhum momento após a etapa do Rio: aceitar dezenas de derrotas brasileiras em baterias disputadas como pré-requisito  de um esporte subjetivo para reconhecer que, de vez em quando, também temos o direito de vencer por décimos.

 

Adriano fez exatamente isso na primeira etapa, na Gold Coast: perdeu para o australiano Taj Burrow com pontuação próxima da perfeição, numa virada. Não postou nada no Twitter, no Facebook nem deu qualquer declaração pública que desabonasse Taj e Joel, campeão e vice da etapa. Ao contrário de seus adversários, ele entendeu a derrota e soube esperar a vez.

 

O problema é que quando a vez de Adriano chegou, os adversários gritaram, como se dissessem que a vitória dele não pode fazer parte do jogo. Resta saber como a ASP vai lidar com o brasileiro nas próximas etapas. É a chance de a entidade provar definitivamente que o esporte não se restringe apenas aos garotos bem nascidos dos países saxões. Adriano pode não ganhar mais nada este ano, mas terá que ser derrotado dentro d´água, em nome da sobrevivência do surf como um esporte competitivo sério.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

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