Leitura de Onda

Royal Straight Flush

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Gabriel Medina exibe leitura precisa de tubo, posicionamento no pico, preparo físico de um touro e fúria competitiva. Foto: WSL / Ed Sloane.

 

Se surfe fosse pôquer, Gabriel Medina teria, em Fiji, um Royal Straight Flush nas mãos. Em tubos massacrantes de 10 a 15 pés, o garoto mais uma vez mostrou um pacote praticamente invencível de cartas. É jogador de mão cheia, tem prazer ao competir. Não à toa, na entrevista logo após a vitória, avisou aos parceiros de pôquer que estava voltando à mesa, louco para uma rodada.   

 

São muitas as qualidades do jogador, algumas na manga: leitura precisa de tubo, posicionamento no pico, preparo físico de um touro, fúria competitiva e, quando preciso, uma centelha de genialidade, na forma de assustadores alley-oops – incompreendidos por alguns.

 

A banca da WSL às vezes realmente não entende o jogo – ou não quer entender. Tiveram que ouvir, nas rodadas seguintes à manobra, a ironia de seus próprios comentaristas: “foi o melhor 6,9 da história”, repetiram, referindo-se à manobra que o brasileiro executou logo depois de sair de um tubo no round 3.  Sou pelo respeito à regra, mas os juízes devem tomar cuidado para não ampliar demais o abismo entre o encantamento e a nota. Gabriel foi defendido até em sites que frequentemente alimentam seus inacreditáveis “haters”.

 

Na bateria mais importante do evento, contra o resiliente líder Matt Wilkinson, não houve sequer embate. Gabriel estava tão confortável que executou outro alley-oop, voltando de layback, para se reequilibrar na onda. Engulam! Capaz de terem baixado a nota dessa onda, que foi bem surfada, por causa da ousadia.

 

O australiano sabia que seria difícil vencer Gabriel. Em fases anteriores, Wilko jogou muito bem, ainda que estivesse sem boas cartas. Ele não é um tube rider excepcional, embora, claro, seja capaz de fazer uma onda extraordinária, como todos na elite.

 

Venceu muitas baterias com notas baixas para o padrão de Fiji – diria que Wilko não estava sequer entre os 10 melhores surfistas do evento, embora tenha feito final e eliminado John John Florence no caminho. Mas soube jogar bem, como muitos outros surfistas já fizeram. Lembrei do mantra de Mineiro, roubado do tenista Agassi, de “surfar melhor que o adversário apenas nos 30 minutos de bateria”.

 

O novo atributo do líder, desconhecido até ano passado, revela muito do trabalho de um gênio do jogo chamado Glenn Hall. Isso mesmo, gênio. Não há outro nome para um técnico que, de um ano para o outro, leva um surfista acostumado a brigar para não ser rebaixado à ponteira da disputa pelo título, chegando à etapa que marca o meio da temporada com uma vantagem de mais de 8 mil pontos sobre o vice-líder.  

 

Faz cada vez mais sentido que Hall, um surfista consciente de sua limitação técnica, tenha eliminado, no jogo jogado, em 2015, um Gabriel recém-coroado campeão. Imagina o que teria feito esse aussie irlandês com um tantinho a mais de surfe no pé?

 

Menos preocupado com o jogo, estava Kelly Slater, dono das cartas mais valiosas do baralho intrincado de Fiji. O americano era o cara, o dono do pico. Fez um bem danado ao surfe ver o melhor de todos os tempos novamente vivo, pulsante, enfileirando notas altas e performances soberbas.

 

A linha precisa, a escolha magistral de ondas, a negociação com a bola de espuma, o trilho perfeito somado ao esforço de dispensar a mão na borda, a confiança que ele emana naquele pico, tudo isso costuma fazer de Kelly o melhor surfista de Fiji.

 

Mas, no meio do caminho de Kelly, tinha um Gabriel. De novo.

 

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Kelly Slater relembra suas performances épicas, porém encontra Gabriel Medina pelo caminho. Foto: WSL / Ed Sloane.

 

Em condições que de algum modo lembravam vagamente – muito mais pelo power do que pela perfeição – o histórico Teahupoo de 2014, Kelly, em condições semelhantes de favoritismo, encontrou o mesmo adversário, desta vez na semifinal. E, mais uma vez, sucumbiu à combinação de técnica, poder físico e jogo tático dele.

 

Curioso é que Gabriel venceu com um placar relativamente medíocre, de 14,67, e Kelly até então tinha como somatório mais baixo desde o início da prova um consistente 16,13, alcançado nas ondas miúdas e tubos escassos do round 1.

 

Até o round anterior ao confronto, o americano sobrava na turma. Nas quartas, contra Wiggolly Dantas, fez 18,70 e ainda jogou fora uma nota 8. Enquanto isso, Gabriel se esfolava para reduzir a desvantagem no confronto direto para Adriano de Souza. Venceu o algoz com cartas baixas e estratégia, somando apenas 10,86.

 

Ao sinal da sirene, Kelly parecia transtornado. Deve ser difícil olhar no espelho e ver no reflexo Gabriel 20 anos depois. Os dois têm algumas semelhanças muito visíveis.

 

Na outra ponta, apontado como presença praticamente certa na final, estava outra aposta certa no pôquer do surfe, brilhante John John Florence. Ali o jogo é poderoso. O havaiano, em forma esplêndida, parece definitivamente dentro da lista de candidatos ao título de 2016, ainda que a distância de Wilko, nesta altura do campeonato, impressione e assuste.

 

A derrota para Wilko causou uma quase revolta. Como pode um surfista que não tinha feito sequer uma nota 9 ao longo da prova derrotar o carisma e o talento de um gênio dos tubos?

 

Desta vez, a resposta não está com Micro Hall, e sim com o próprio JJ.

 

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Matt Wilkinson abre ainda mais distância na liderança do ranking. Foto: WSL / Ed Sloane.

 

O havaiano luta contra um vício, uma mania obsessiva por notas máximas. Joga sempre tudo contra a banca, à moda de um louco de cassino. Compete como a nota máxima fosse obrigatória, surfa no limite da possibilidade de uma onda – e, exatamente por isso, muitas vezes, fora desse limite.

 

Para nós, isso é uma dádiva, um deleite. Para ele, é faca de dois gumes: por um lado, ganha a admiração do mundo; por outro, sofre com derrotas infames.

 

Eu poderia falar de uma onda, a menos de cinco minutos do fim, em que ele se posicionou muito para dentro do pico, em busca da tal nota “12”. Mas não, um exemplo contestável não definiria sua personalidade. John John é assim o tempo inteiro. Está em sua natureza – ele será campeão do mundo ou não deste jeito.

 

Antes da derrota, JJ deu ao mundo do surfe um presente inesquecível: dividiu o line-up com Taj Burrow, num momento mágico do mar, para a bateria que definiria a aposentadoria do australiano. Numa sucessão de ondas surfadas que impressionaria até a minha tia avó que mora no interior de Minas, os dois surfistas protagonizaram o confronto do ano, num placar que poderia tranquilamente ser de 20 a 20.

 

Meu avô dizia que momentos mágicos merecem um compositor à altura: Johann Sebastian Bach. Liguei o vídeo da WSL e liguei em outro dispositivo “Badinerie”, do louco músico alemão. Casou. Dediquei o momento solene a Taj e voltei para o jogo.

 

Antes do quinto em Fiji, Adriano de Souza ficou em terceiro no Rio com atuações sólidas, e agora parte para Jeffreys Bay, onde surfa o fino, dentro do seleto grupo dos top 5. Wiggolly repetiu a posição de Mineiro. Perdeu para o inspiradíssimo Kelly, fez algumas ondas boas no evento e deu sorte na interferência de Conner Coffin nas fases iniciais. Mas Guigui, diferentemente de muitos outros, pode mais. Bem mais. Basta acreditar.

 

Os brasileiros voltaram à mesa. Nas quartas de final de Fiji, dos oito surfistas na mesa, três eram brasileiros. Jadson ainda fez um heroico nono lugar, com direito a ondas muito bem surfadas, combinando tubos e carvings com mão na borda. O ranking depois do evento ganhou um colorido verde-amarelo, com três brasileiros entre os cinco primeiros – Gabriel, em segundo, Italo, em quarto; e Adriano em quinto.

  

O novo Wilko é um adversário desconhecido, que tem aberto vantagem em picos onde jamais fizera um bom resultado. Portanto, impossível prever o futuro. J-Bay é uma onda afeita a seu surfe, o que torna a situação ainda mais confortável para ele.

 

Mas eu não queria ter Gabriel faminto no meu encalço. Ou John John, ou Italo, ou Adriano. Não é blefe: ou Wilko segura muito bem o jogo ou alguém quebra a banca.

 

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Amigos fora d’água, Matt Wilkinson e Gabriel Medina são os dois primeiros do ranking e terão uma longa batalha pelo título mundial. Foto: WSL / Ed Sloane.

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".