Muitas águas

Sonho de garoto

Santa Catalina, Panamá, 1987

Visual de Santa Catalina, Panamá, 1987. Foto: Motaury Porto.
O surf tem esse ingrediente básico: o sonho. Somos sonhadores por natureza. Imagens que se formam em nossa mente, projetando em nossas vidas o desejo da conquista de cada sonho. A vida é assim mesmo e comigo não foi diferente.

 

Desde muito pequeno passei a sonhar com ondas, lugares, “estados” emocionais, conquistas pessoais. Estudava num rigoroso colégio católico, em São Paulo, semi-internato, o dia todo estudando, vivendo aquele mundo com tantas teorias sendo “despejadas” em meu mundo, meu pequeno mundinho.

 

Atualmente as direitas de Catalina permeiam o imaginário de muitos surfistas, bem diferente de como era há quase 20 anos. Foto: Motaury Porto.
O que muitos professores não imaginavam, é que entre tantas fórmulas e arquétipos, minha mente e coração vagavam pelos mares a procura de ondas. Meu quarto, que estava a mais de 100 quilômetros da praia mais próxima, era um pedacinho do oceano no coração da selva de pedra.

 

Eu tinha o hábito de buscar por revistas de surf e decorar as paredes do quarto colando pôsteres. Na época que comecei a surfar com prancha de fibra (janeiro de 1977), existia apenas a extinta e pioneira revista Brasil Surf. Cada edição nas bancas (às vezes tri-mestral)  era como um tesouro encontrado!

 

A capital São Paulo tinha ótimas bancas de jornal, onde eu me abastecia de revistas americanas, como Surfer e Surfing, as únicas que então chegavam “milagrosamente” no Brasil; um Brasil de pouquíssimos surfistas, de um mercado de surfwear praticamente inexistente se comparado com a indústria de hoje.

 

Em determinado momento, meu quarto estava absolutamente tomado por dezenas de pôsteres. Acreditem, cheguei a colar no teto! Mas havia um em especial que me chamava muito a atenção. Uma direita quebrando perfeita, um cara dando um drop clássico, e em primeiro plano uma garota sentada numa cadeira dessas de diretor de cinema num penhasco. Na legenda algo como: Somewere in Central América.

 

Logo fui ver que a América Central era composta de muitos países. Como encontrar aquela onda? Os anos passaram,  acabei meus estudos no ginásio e colegial e me envolvi no surf como fotógrafo profissional. Este ano mesmo completo 25 anos de carreira (isso já é outra história).

 

Foi então que, em 1987, saí pela revista Costa Sul, de Porto Alegre, para uma viagem de três meses, que passava pela América Central. Naquela época eu nem me lembrava mais do pôster, mas meu inconsciente o guardara, e muito bem. Um dos países a ser visitado era o Panamá, onde meu fiel companheiro de viagem, o Mike das pranchas Summer Birds,  conhecia um dono de surf-shop para quem ele exportava pranchas.

 

Fomos bem recebidos e ele nos levou para um point do qual nunca ouvira falar, uma onda perfeita chamada Santa Catalina. Chegamos após muitas horas dirigindo e nos hospedamos numa casa que ele estava construindo, que mesmo em obras pôde nos abrigar, apesar das imensas ratazanas que passavam a centímetros de nossos sacos de dormir.


Eu sempre gostei de madrugar pra ver as ondas e naquele dia nem imaginava o que estaria para acontecer, um dos momentos mais marcantes das minhas aventuras atrás das ondas. Todos dormiam e naquela fresca manhã, caminhei até a ponta de um penhasco para conhecer o lugar já que havíamos chegado de madrugada.

 

Meu rosto ainda estava quente, sentindo a brisa de terral. Fui chegando até a ponta daquele penhasco e diante de meus olhos se descortinou uma das visões mais magníficas que um surfista-fotógrafo poderia sequer imaginar: uma direita perfeita quebrando, sozinha, num mar acariciado por um terral contínuo… Sentei e fiquei contemplando aquela maravilha da criação de Deus.

 

Foi quando escutei uma “voz” interior, uma “imagem” projetada em minha mente. Era aquela foto do pôster que por tantos anos me acompanhara na cabeceira de cama em São Paulo. O sonho virara realidade! Somewere in Central America estava diante de mim!

 

Os dias que se seguiram foram únicos. As ondas e as fotos resultaram em uma matéria publicada com destaque na Fluir número 38, de 1988, pois infelizmente a Costa Sul veio a fechar. O sonho de garoto virara a mais pura realidade…

 

Deus guarda gratas surpresas para nossas vidas, algumas que nem sequer imaginamos.

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