Surfar sozinho

Felipe Fernandes, campeão do Drop Competição 2004, durante free surf no Gravatá

Formado nas ondas de Maresias, Felipe Fernandes curte free surf solitário no Gravatá, Florianópolis (SC). Foto: Everton Luis.

Fiquei com vontade de escrever este texto para os amigos da Waves quando explicava ao Hélio, um amigo luso-brasileiro, sobre o surf solitário. Disse que é uma arte. Você tem que gostar de mares maiores, sinistros, que filtram o crowd. Às vezes, a condição não é nem tão boa, mas é um dia de treino, para capacitar o surfista a pegar onda em qualquer pico do mundo.

 

Não se compara a surfar com os seus melhores amigos, mas você também curte o astral e até forma novas amizades no outside, que valem para o resto da vida, ao encontrar algum maluco, que sofre do mesmo mal, de encarar qualquer mar tempestuoso.

 

Numa session na Joaca dominada pelo tow-in, Felipe Fernandes cai no braço e despenca legal. Foto: Mister Take.

Conhecimento das condições, preparo e experiência são itens vitais para o sucesso. A coragem e o equipamento certo ajudam a aproveitar as condições extremas, mas nada impede de você cair mesmo com pranchas menores, só para sentir a vibe e tentar pegar uma intermediária que seja, em algum pico completamente sem crowd.

 

No começo, eu ficava morrendo de medo de surfar sozinho. Pensava em ?Tubarão?  – filme lançado no Brasil em 1977, justo quando comecei. Aquilo mexeu comigo e com toda uma geração. Só mesmo a vontade de dropar qualquer onda grande que aparecesse para me fazer superar este conflito psicológico.

 

Saudosa Jade Dechiara entre os irmãos Felipe e Cristian Fernandes durante feira Surf & Beach 2005. Foto: Juninho.

Outro ponto determinante é quando você chega no outside, aqui no Brasil principalmente – que na maioria das vezes não tem canal pra varar ? e precisa se posicionar para não ser varrido e ainda tem que conseguir pegar as ondas, ou seja, nem pode ficar muito pra fora nem muito pra dentro do pico.

 

Ser varrido é uma constante. É preciso se acostumar e muitas vezes soltar a prancha, para fazer o efeito âncora.

 

Uma cordinha grossa e extensa é importante nessas horas, e considero um equipamento muito sério, tanto quanto uma boa prancha.

 

Não me importo com o arrasto que criam, porque as ondas são tão fortes nestas condições, que você nem sente a perda de velocidade. Por isso, prefira cordinhas mais longas, que em situações de mar tubular, quando você rola embaixo da água, a prancha pára longe do seu corpo.

 

O risco de se cortar numa quilha ou tomar uma pancada diminui. Lembre-se que ninguém vai poder socorrê-lo, em caso de acidente.

 

Chegar ao outside não é muito simples, mas compensa. Observar o mar por 10 minutos pode livrá-lo de cansaço desnecessário. Quando as séries estão terminando de bombar, a maré dá uma enchida e esta é a hora de estar na beirinha e já se lançar.

 

É provável que você vá rápido até o outside quando a água está sendo sugada para o fundo, mas já saia preparado para dar vários joelhinhos no caminho e até de encontrar a outra série vindo lá fora.

 

A adrenalina vai ao extremo quando você passa no limite, quase pendurado no lip. Também já aconteceu de o mar ficar sem quase nenhuma onda até a jornada ao outside, mesmo com swells de 8 pés. É uma questão de sorte e observação.

 

O ideal é passar a arrebentação e ficar bem além do pico onde aparece o rastro da espuma. Sem ninguém para marcar o lugar de drop, o jeito se situar antes de entrar em ação.

 

Quando uma série bem grande quebrar, daí esta será sua primeira referência de onde se deve permanecer para pegar esta onda e não ser varrido. Pois é a rainha que você quer e não as intermediárias.

 

Esperar por ela, vale a pena, ainda mais depois de tudo o que você já fez para ir até lá fora.

 

Cada pico tem a sua melhor onda da série. Em Maresias, por exemplo, considero que a melhor é sempre a segunda ou mesmo a terceira.

 

Já nas praias de Floripa, acho que a primeira onda é a melhor do seriadão. Ao notar um balanço no horizonte, reme pela vida, mas também vire a prancha e se atire quando achar que vai conseguir.

 

Lembrei que contava ao Hélio, de um dos segredos que utilizo: nunca bater na junção e sempre tentar sair pra trás da parede, antes dela fechar. Pois a distância que você é arrastado quando a onda se fecha, pode impedir o seu retorno ao outside, se o pico não tem canal para varar.

 

E aqui no Brasil as arrebentações parecem que estão na África, quando o mar fica muito grande e stormy.

 

Quem surfa mesmo, não se intimida com dias chuvosos. Não vale a pena arriscar a vida e surfar com tempestades de raios, em compensação, dias só de chuva não assustam ninguém.

 

Outra coisa legal é que você repara muito mais na natureza e nos animais marinhos quando está sozinho, é quase uma meditação.

 

No final dos anos 70, na praia da Enseada (Guarujá), rolou um mar cavernoso, com vento terral soprando, numa manhã de inverno.

 

Nando, Fábio e eu estávamos na praia vazia. Eu dei a maior pilha pra entrarmos, logo que vi um tipo alemão cair e varar mais para o lado do Tortuga. Depois de muito sufoco, fui tentar.

 

Passei a arrebentação, mas ao me sentar na prancha para descansar, notei que estava sozinho lá no fundo. A galera não caiu e o alemão estava muito longe.

 

Peguei uma onda de glória ou morte, e consegui dropar, andar na parede e cheguei na beira. Fazia frio e não tínhamos roupas de neoprene. Aquele foi o meu primeiro dia que tive que surfar sozinho, e infinitos outros vieram depois deste.

 

Hoje, os picos onde surfo sozinho são o meio da Joaca e o Gravatá. As dicas que escrevi têm funcionado para mim, não são regras, simplesmente, servem para orientar e motivar surfistas que desejam muito entrar no mar, mas os amigos muitas vezes têm dificuldades em lidar com esse desafio.

 

A gente não deve zombar de ninguém, se você quer mesmo, vai lá e cai, sozinho.

 

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