Leitura de Onda

Tempo, competidor implacável

Jadson André, Hang Loose Pro Contest 2010, Cacimba do Padre, Fernando de Noronha (PE)

 

Jadson André exibe seu arsenal em tempo de modernidade no esporte. Foto: Aleko Stergiou.

A partir desta quarta-feira o jornalista carioca Tulio Brandão, repórter de O Globo, está de volta ao nosso convívio para escrever a coluna semanal Leitura de Onda.

 

Agraciado duas vezes com o Prêmio Esso, o mais importante reconhecimento da imprensa brasileira, Brandão é um grande free surfer e além de pegar suas ondas também assina uma coluna na revista Fluir – Surf Deluxe, nome de seu blog.

 

Então, bem-vindo novamente ao Waves e fique à vontade para falar do esporte e sobre qualquer outro assunto que julgar conveniente. A casa é sua, brother!

 

Volto ao Waves com o prazer de quem pega a primeira onda. Não vou perder tempo com mais uma apresentação – não que eu a dispense, é que o leitor tem mais o que fazer da vida.

 

A coluna Leitura de Onda, no passado escrita de modo intermitente para o site, agora é semanal. A ideia é dissecar até o osso as últimas informações do mundo do surfe e, claro, falar muito do grande circo místico do World Tour e de suas maiores estrelas.

 

Como os melhores do mundo já estão com os pés na água fria de Bells para a segunda parada do ano, está mais que na hora de segurar a batata quente dos prognósticos de 2010.

 

No ofício rotineiro de repórter, sou pago para escrever a opinião dos outros. Pode não parecer, mas é mais fácil. Aqui, a tarefa é mais arriscada: o colunista tem o dever de se posicionar, de fazer apostas e de justificar os seus votos, com uma análise da temporada.

 

Escrever sobre o que pode acontecer é como dropar no vazio. E não vale puxar o bico.

 

A primeira impressão é de mudança de bastão. O ano deve ser de transição, de definição de novos padrões no surfe. Os eleitos pelos palanques da ASP já perceberam que o funil de títulos e vitórias está próximo de fechar, diante do ataque cada vez mais consistente da nova geração, liderada por um cada vez mais forte Jordy Smith.

 

A geração dourada de aussies – de Mick Fanning, Taj Burrow e Joel Parkinson – sabe que talvez tenha mais um ou dois anos para tentar um título mundial. Quem já levou o seu quinhão, como os dois de Fanning, trabalha com menos pressão. Mas Joel e Taj, eternos favoritos com históricos vices, estão com a faca no pescoço.

 

Vão surfar no limite em 2010, vão enfrentar o mais temido adversário: o tempo.

 

Não fosse a ambição frenética pelo décimo título mundial – e pela mala de verdinhas que isso representa – Kelly Slater talvez não estivesse na água mesmo com o pé machucado na Austrália. O cara sempre ignorou o tempo, impôs seus próprios padrões, mas deve estar cansado dessa vida.

 

Kelly entrou na elite em 1991, quando o título ficou nas mãos do australiano Damien Hardman, hoje um respeitado diretor de provas de eventos da ASP. Desde então, o floridiano passou sem sustos por duas décadas, sempre vencendo, ditando o ritmo.

 

Nos primeiros anos do século 21, depois de um período sabático, Kelly chegou a hesitar diante da fúria competitiva de um moderno Andy Irons, mas acabou neutralizando o adversário a tempo de levantar outros três canecos.

 

Agora, está diante de seu último – e talvez maior – desafio: reinventar o seu surfe para superar a maior mudança de paradigma do esporte desde que os garotos aussies de “Bustin Down The Door” assombraram o mundo no fim da década de 70.

 

Será o maior gênio da história do surfe capaz de se sair bem dessa?

 

O tricampeão Andy Irons fez Slater sofrer, mas quando perdeu o reinado desabou do trono de uma maneira quase definitiva. Voltou este ano, em parte recuperado do baque, em parte empurrado pela indústria – que sonha ver o havaiano de volta à forma. Irons, nos seus 100%, é um surfista moderno, dono de uma linha suave e capaz de vencer qualquer garoto. 

 

Adriano de Souza carrega nas costas um bônus e um ônus. Com uma mistura equilibrada de talento, determinação e disciplina, o garoto conseguiu encostar nos líderes do circuito. Hoje, compete de igual para igual os top 5 – mais que isso, tornou-se um deles. E executa tão bem a rotina de manobras quanto qualquer Parkinson ou Slater. Um bônus, sem dúvida, que o coloca numa posição privilegiada na luta por um título imediato.

 

Mas o ônus também está aí: aos 23 anos, ele conseguiu se igualar a surfistas na casa dos 30, que estiveram na liderança por muito tempo, mas agora estão sob pressão. A questão é que vem aí o trem nova geração, onde estão, além de Jordy, Dane Reynolds, Owen Wright, Patrick Gudauskas, Dusty Paine e outros garotos abusados, loucos para impor um novo conceito ao universo do surfe de competição.

 

Adriano, também garoto, talvez ainda não tenha entrado nesse trem do futuro, mas tem talento e idade para pular a qualquer momento num vagão em movimento, sem cair nos trilhos. Seria a primeira reinvenção – entre muitas, espero – de seu surfe.

 

Jadson André é o único brasileiro que já tem vaga dentro do trem, ainda que não esteja – por enquanto – num assento de primeira classe. É uma promessa e tanto para o surfe brasileiro, num ano em que os goofies parecem estar voltando às boas com os juízes. Parece ser um cara tranquilo, que não se ilude com a fama e, mais que tudo, tem um repertório moderno, capaz de levantar notas. Na Austrália, surfou de backside – posição em que ele mesmo assume deficiências – e surpreendeu muito. Poderia ter sido mais bem julgado na Gold Coast. Na etapa de Bells, atropelou sem dó o veterano Taylor Knox e segue vivo.

 

Neco Padaratz já gravou seu nome na história, mas agora está no alvo do inexorável tempo. Suas rasgadas de frontside, antes uma arma valiosa, parecem ter sido atropeladas pelos novos movimentos do esporte. Nas etapas da Austrália, os juízes – talvez até injustamente – não valorizaram suas rasgadas. Suas notas pareciam nitidamente presas a um teto baixo.

 

Mas está aí um cara que não pode ser enterrado vivo. Neco é um especialista em reaparecer das cinzas. Não se surpreendam se ele surgir nas próximas etapas com um surf mais moderno e notas mais altas.

 

Marco Polo está tendo dificuldades em sua estreia no tour. Na Gold Coast, não perdeu apenas para os surfistas, perdeu para a própria prancha. Perguntei a vários amigos surfistas se eles tiveram a mesma impressão ao vê-lo surfando. Sim, para quem terá que competir contra os melhores, ele tinha muito bico sobrando e pouco drive. Em Bells, Polo melhorou bastante. No round 2, perdeu surfando bem para Jordy. E não lhe falta maturidade e vontade para driblar as dificuldades e tentar beliscar algum resultado em seu ano de estreia na elite.

 

Antes de acabar a onda, aparece Bede Durbidge. O australiano até parece um brasileiro, tamanha é a insistência do mainstream em não apostar nele. Mas o “fijiano branco”, como é conhecido no tour, tem virtudes que o tornam cada vez mais um candidato real: executa todo o repertório de manobras exigido pelos juízes, é um competidor frio, não teme as estrelas e pior para os outros, surfa melhor a cada temporada. Pode não ter o surfe mais bonito e vistoso do WT, mas estilo não ganha caneco. Parkinson sabe muito bem disso. 

 

Agora é esperar para ver quem vai tocar o sino de Bells.

 

Tulio Brandão é repórter de O Globo, colunista do site Waves e da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe

 

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