Lisergia Clássica

Tradição carioca

Praia da Macumba (RJ),

Enquanto a ideia do filme Lisergia Clássica nascia, juntamente com a Califórnia, o Rio de Janeiro era o local que trazia mais expectativa pelo grande conteúdo histórico. – “Rio vai ser legal de fazer, mas vai dar trabalho”.

 

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Só parei de repetir essa frase quando enfim fomos gravar por lá. A cada dia de gravação que terminava a profecia se cumpria diante de tanta pauta à disposição. E só vai terminar depois que editar o filme completo. Às vezes isso remete ao Fuad Mansur resmungando no seu depoimento sobre o sucesso da Fu Wax, que agora os compromissos vêm empatando o surf dele. 

 

Da poesia ao caos O visual da Barra da Guaratiba nos acolheu por uma semana. Thiago Mariano, o anfitrião é uma das apostas do filme. Longboarder tarimbado, manda bem também no SUP e pranchinhas não convencionais, é shaper, músico e filho de um dos surfistas mais undergrounds do RJ.

 

Mesmo com todo esse conteúdo ele superou as expectativas. A criatividade e a elegância são os ingredientes que o diferencia com qualquer prancha ou tipo de onda. Sem nem ele mesmo perceber acabou ganhando um destaque natural no filme.

 

No dia que completou 35 anos, se misturou num final de tarde com céu psicodélico e vento terral nas ondas da Guaratiba, resultando uma das mais belas cenas gravadas até agora.

 

Da poética Guaratiba para a caótica Zona Sul. Arpoador também é poesia, mas o caos da cidade e o crowd ferrenho são um contraste agressivo. Na pauta Wady Mansur e Phil Rajzman. Um encontro de gerações no berço do surf carioca. Wady é irmão do meio dos lendários Elias e Fuad Mansur.

 

Colombiano de nascimento, viveu em Santos e Rio de Janeiro. Tem muito conhecimento histórico, com 58 anos pegou o final do pioneirismo do surf no Brasil e a explosão dos anos 70 em diante.

 

Figuraça, foi fundamental nos contatos com a velha guarda do Arpoador. Ainda tem surf afiado no pé e disposição para dropar em cima da pedra no Arpex, dividindo algumas boas ondas com o Phil.

 

O campeão mundial de 2007 é padrinho do projeto social Surfe no Alemão, que leva crianças da comunidade para surfar. A favela do Alemão sempre foi umas das mais violentas e apesar da chamada pacificação, quase tudo está como antes.

 

O tráfico ainda acontece, apenas os traficantes não ficam tão expostos como antes. Pessoas da comunidade afirmam que a ideia de pacificação é enganosa, que tem muita sujeira debaixo do tapete, tanto que dois dias depois de termos passado lá aconteceu um tiroteio pesado que foi noticiado pela mídia.

 

No entanto a primeira imagem é a que fica. O complexo do Alemão se mostrou em paz e até mesmo com uma beleza intrigante, principalmente visto de cima.

 

Quebrando o estereótipo Diante de um contraste social enorme, o Wady promoveu um encontro no sofisticado Iate Clube com os lendários Irencyr Beltrão e Armando Serra, acompanhados da Maria Helena Beltrão e Fernanda Guerra, pioneiras do surf carioca. A conversa foi longa e muito informativa.

 

Das madeirites até a chegada do australiano Peter Troy, as primeiras pranchas de fibra, os primeiros surfaris pelo Rio, os personagens etc. Muita informação, o que quer dizer muito trabalho pela frente. Logo o depoimento do Fuad vem à mente. Definitivamente eles não pareciam os surfistas que a maioria das pessoas pinta.

 

Fernanda ainda se entrega, mas nada de vovôs sobreviventes da Woodstock, cabeludos e tatuados. Irencyr e Armando eram especialistas em mergulho livre e outras atividades ligadas ao mar. São do tempo que antecedeu o movimento hippie e suas consequências, antes de nascer o esteriótipo do surfista vagabundo e maconheiro.

 

Por um momento foi intrigante a entrevista daqueles senhores com tanto envolvimento num esporte tão rotulado como foi o surf. Uma situação interessante para ser documentada hoje.

 

Macumba da boa Surf para dar um alívio. Praia da Macumba, o maior point do longboard fluminense. O filme segue um roteiro pré-definido, com personagens previamente determinados, o que significa que muita gente boa vai ficar de fora. E longboarder bom é o que não falta na Macumba.

 

Situação no mínimo desconfortável. Foco no Marcelo Freitas, Thiago Mariano e Chloé Calmon. As ondas ajudaram, não resisti e me juntei a eles. No maior dia, durante o final de tarde a ondulação encaixou e liguei para o Freitas às 17:00 horas.

 

Ele achou que já estava tarde mas insisti dizendo que só precisava de mais duas ondas boas dele. Em dez minutos ele já estava na água e conseguiu cinco ondas excelentes. Bom assim, quando o personagem facilita o trabalho. Lá pelo Recreio, Daniel Friedman e Rico de Souza deram informações preciosas de quem viveu intensamente o surf por toda vida.

 

Para fechar a capital faltava filmar com o Eduardo Bagé, um dos longboarders mais completos do mundo, que vive há quase dez anos na França. Ele estava de passagem pelo Brasil acertando documentação e iria aproveitar para arrancar o dente ciso.

 

Insisti algumas vezes para ele arrancar o dente depois que gravássemos, mas ele não atendeu meu pedido e teve que ficar de molho nos dias que a Macumba funcionou. Mesmo assim nos encontramos na Prainha para uma filmagem de dentro dágua e de tarde um churrasco para celebrar o aniversário do seu filho mais velho. Bagé é daqueles que sempre vale encontrar, além do surf refinado é um cara atencioso e engraçado. 

 

Maracanã do surf Enfim Saquarema. Quando se vai para algum lugar com importância história, sabendo da sua tradição e procurando por isso, o encantamento é maior. Saquá tem clima de Hawaii não só pelo power das ondas, mas porque muita coisa já aconteceu por lá. A missão principal era encontrar o Penho, pela sua jornada pioneira e aventuras pelo mundo.

 

Mas nada vem antes do surf. Itaúna com Rodrigo Sphaier, Mica, Matheus Cunha, Jeferson da Silva e Robledo de Oliveira. Esses também facilitam o trabalho, pegam bastante onda, sempre as boas e bem surfadas. O mar ficou bom por dois dias, altas esquerdas e algumas direitas.

 

Penho, que já anda meio avesso a entrevistas até se animou em falar com a gente, mas no dia seguinte um bilhete no portão da sua casa avisava que estaria no Espírito Santo por uns dias, numa emergência familiar. Tudo bem, em se tratando do vasto conteúdo do Rio, existia não apenas um plano B, como um abecedário completo.

 

Fomos até a casa do Russel Coffin, que nos recebeu com hospitalidade. Ele trouxe a primeira prancha de fibra para o Rio de Janeiro e também a Clark Foam para o Brasil. Além dele gravamos com o lendário Rossini “Maraca” Maranhão, um dos mais carismáticos legends do surf brasileiro, que também está produzindo um filme, intitulado O Maracanã do Surf, sobre a história de Saquarema.

 

Este sim, cabeludo e com uma excentricidade pueril de quem parece que acabou de surfar sua primeira onda. Mas isso não esconde a grandeza do seu envolvimento com o surf por tantos anos.

 

Ainda passamos em Cabo Frio para filmar com o Carlos Mudinho, referência surf clássico no Brasil. A limitação na fala e audição não é empecilho para ele se comunicar, aliás ele não se priva de uma boa e demorada conversa, mas é quando está surfando que se expressa como poucos, passa através do estilo o seu conceito de surf. A entrega com que surfa mostra a importância que o surf tem na sua vida.

 

De volta para Saquá, absorvendo tudo o que rolou naqueles últimos dias, ficou claro a dimensão do quanto a cidade representa na história do surf carioca. Pela fuga da capital, pelos Festivais de surf, pelo movimento hippie dos anos 70, pela paz e pelo amor, pelas ondas.

 

Muita energia foi depositada lá, muitas casas foram construídas, formou-se uma comunidade grande surfistas locais e ainda assim a magia está lá. Tendo absorvido toda essa atmosfera, os locais valorizam muito a tradição de Saquarema, carregando um legado de vida simples e muito surf. Quase como era antigamente.

 

Lisergia Clássica é um filme em produção que retrata a pureza do surf, com participação de grandes nomes do longboard brasileiro e mundial. As primeiras gravações foram feitas na Califórnia, tendo sequência no Peru, durante um consistente swell na região de Chicama. Além do Brasil, as locações seguem para outros destinos de ondas perfeitas, como a Costa Rica. Idealizado pelo longboarder Jaime Viudes e com fotografia de Paulo Camargo, o filme tem um conteúdo diferenciado pela filosofia dos personagens, que encaram o surf pelo simples prazer de surfar. A tradição é um dos temas, evidenciada pelas performances e depoimentos de lendas do surf. A riqueza de informações e de imagens clássicas transformam o filme num documentário inédito sobre o lirismo e a história do esporte. Indicado inclusive para quem não pega onda. Co-produção: Galeria Filmes e Toca Produções.

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