Mar da vida

Tucano dá o sinal

Victor Caldas, Guarujá (SP)

Victor Caldas pega o maior mar da sua vida no Guarujá. Foto: Arquivo Pessoal.

A ansiedade era tanta que acordei de madrugada. Saí de casa para ver o céu. Tinha estrelas para todos os lados. Voltei para a cama sem tirar a previsão da cabeça. Os gráficos indicavam 3 metros na costa Sudeste brasileira. 

 

O coração acelerava só de pensar nos vagalhões marchando em direção à praia. Tive que me esforçar para redirecionar o foco e pensar em coisas menos adrenalizantes. Consegui voltar a dormir, mas acordei bem cedo, pilhado, louco para dar uma primeira olhada na praia de Pernambuco, Guarujá (SP).  

 

Quando cheguei à praia, bingo! As séries quebravam lá fora. O line up parecia ser na ilhota de pedras. Sinceramente? Estava como eu nunca vi em quase 20 anos de surf. Storm, inviável, mas com a superfície lisa, sem vento e nenhuma nuvem no céu. 

 

Voltei para casa, fiz um café reforçado e parti depois de ver um lindo tucano amarelo sobrevoar o quintal. Nunca tinha visto um, sempre ouvia meu sogro falar que eles existiam por ali, então levei o flagra matinal como outro auspicioso sinal da natureza. 

 

Eram 7:30 horas, a estrada do canal de Bertioga estava ensolarada, fria e completamente deserta. Paisagem de filme. Passo quase todo final de semana por ali, mas dessa vez, por razões óbvias, sentia coisas diferentes, com a intensidade de quem vai ao lugar pela primeira vez. 

 

No Perequê, o píer em construção sambava junto às ondas. A molecada da favela do Mangue fazia um surf clássico em ondas de meio metro e dilacerava as marolas com manobras potentes. Outra excelente pista para o que me aguardava. De volta à estrada do canal de Bertioga, os poucos carros que passavam eram de surfistas. E eles vinham no sentido contrario. Será que está over, pensei. 

 

Cheguei ao estacionamento da praia. Sem conferir as condições, desci as escadas com a prancha em baixo do braço. Estava disposto a entrar no mar independentemente do tamanho. O segurança do condomínio falou: Hoje está com onda, hein!

 

Perto da cachoerinha, deu para ver que a água batia com força no primeiro lance de escadas. Com o pé na areia,  fitei as ondas, mas com o sol  brilhando forte, era quase impossível medir de fora o tamanho da encrenca. Dava para ver que, assim como em Pernambuco, as ondas quebravam a uma distância enorme da praia. Haja braço. 

 

Como consolo, vi umas dez cabeças no fundo. Ou seja, era viável varar a arrebentação. Entrei junto com outro cara, bem rente às pedras. Ali é o canal e a correnteza te joga para dentro do mar, quase sem levar onda na cabeça. Não naquele dia. Eu e o cara remávamos, remávamos e não saíamos do lugar. Quem pega onda e nunca viveu isso? De olhar para o cara do lado, não dizer nada, mas um dizer tudo para o outro? Por que raios não estamos conseguindo? Pensávamos. 

 

Depois de começar a bateria esquentando os braços até o limite, finalmente deu uma calmaria. Remamos com a maior força que pudemos e chegamos ao outside. Ou melhor, chegamos ao primeiro outside. Sim, havia três sessões bem definidas. Na primeira, lá no fundão, fundão mesmo, ninguém tentava surfar. Estava muito gordo para entrar na remada. A segunda sessão também estava gorda, mas era totalmente possível de entrar, sendo que essa onda terminava onde começava a terceira sessão. Ou seja, acabava onde geralmente é o outside de São Pedro nos dias comuns.  

 

Não havia ninguém surfando na primeira sessão. A maioria esmagadora dos vinte surfistas optava pela segunda onda. Só lá dentro deu para ver direito. As ondas tinham entre 2 e 2,5 metros. Algumas chegavam a 3 metros, a maioria manobrável e bem gorda. 

 

Sem dúvida, eu estava surfando o maior mar da minha vida no Guarujá. Como decidi pegar as ondas que entravam na terceira sessão (a mais próxima da praia), sentado na prancha, esperando as séries, via drops inacreditáveis serem feitos. Algumas batidas bonitas e cut backs estilosos também eram executados, para meu deleite de espectador. Lá pelas 9 horas, chegou um pessoal de jet para fazer tow in na primeira sessão.

 

Sendo rebocado, o cara entrava na onda numa baita velocidade. Se escolhesse uma boa, conseguia emendar as três sessões e surfava por mais de um minuto. Fiquei com inveja. Vi muitas ondas de 2,5 metros serem surfadas, mas me orgulhei de estar ali enfrentando a natureza no braço. 

 

Além disso, optei pela onda da terceira sessão, que apesar de ser menor (algo entre 2 e 2,5 metros), era disparado a mais power. Ao contrário da primeira e da segunda, as ondas da terceira sessão não tinham nada de gordas. E se você fizesse a escolha certa, pegaria uma extremamente longa.

 

No entanto, o preço cobrado por surfar a terceira onda era disparado o mais alto. Ficar na espera, significava tomar na cabeça as maiores da segunda sessão, que entravam com  até 3 metros. Apesar do tamanho, as ondas não chegavam a machucar de tão gordas.

 

Bastava largar a prancha e afundar. Mantendo a calma, não dava em nada. Agora, sem dúvidas, o tal preço mais alto por surfar na terceira sessão era cobrado quando a onda acabava. Você caía indefeso na zona turbulenta do inside, onde bombas de 2 metros estouravam sem parar.                 

 

Fato é que passei quase quarenta minutos sem conseguir pegar nada. O crowd já tinha feito a cabeça em várias da segunda sessão, e eu lá, insistindo na terceira. Mas fui recompensado e bem na minha frente, surgiu aquele triângulo majestoso, penteado pelo leve vento terral, bronzeado pelo solzão de inverno.  Coração a mil, os braços remando ao máximo para fazer a prancha 7 pés toda azul encaixar bem nos trilhos e o drop não sair atrasado. Subi na prancha com o vento empurrando muita água na cara. Só comecei a enxergar as coisas lá embaixo, curvando a prancha na base do vagalhão líquido. 

 

Onda incrível, abria muito, não dava para saber exatamente o tamanho, mas era linda, perfeita, extremamente emparedada. A velocidade da prancha era espetacular, o que me fez lembrar de reforçar a pressão nas coxas para não cair. Percorri uma enorme distância até entrar no inside, onde  a onda  se reergue e a prancha dá a acelerada final, como se fosse um segundo drop. 

 

Finalizei com uma espumeira sinistra explodindo atrás de mim, a mesma contra a qual travei intenso duelo para me manter em pé, só que não teve jeito. A natureza venceu. Levei pelo menos mais umas três na cabeça até sair do mar em completo êxtase. Depois de vencer o perrengue, sentia-me seguro física e psicologicamente. Caminhando de volta ao canal, prestes a pegar mais outras, gritando em silêncio, encontro um cara com uma objetiva enorme, posicionado em cima do muro das casas. “Cara, tirei umas fotos suas nessa onda”, ele falou. E na camaradagem, me ofereceu as fotos gratuitamente. 

 

Entrei no mar, peguei mais umas quatro boas e fui expulso depois de  levar uma vaca incrível. Despenquei de lá de cima e rodei pacas no fundo. Para piorar, na sequência, tomei inúmeras outras na cabeça. Saí do mar completando duas horas e meia de surf, cinco ondas acumuladas, várias registradas, orgulhoso pelo coração e pulmão de quem já é casado há 9 anos, tem 33 e duas filhas.

 

Viva o tucano! Bati mais um papo com o fotógrafo. Ele falou que se eu lhe trouxesse um pen drive, colocaria toda a sequência. Fui correndo até o comércio de Pernambuco, comprei o pen, voltei e levei rapidinho para o cara. Combinei de pegar as fotos no final de semana seguinte. Agora, só me restava passar a semana inteira pensando nos registros fotográficos da mente e da máquina. Só quem surfa entende.

 

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